São Paulo, quarta-feira, 16 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Violência e direitos fundamentais

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

No dia 10 de dezembro de 1948, as Nações Unidas promulgaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos -dos "direitos fundamentais do ser humano", que foram incorporados a quase todos os textos supremos dos países signatários.
De rigor, trata-se de uma consolidação daqueles direitos que foram sendo detectados, no curso da história, como inerentes à dignidade do homem, ao ponto de René Cassin, um dos idealizadores da declaração, ter afirmado que tais direitos são-lhe inatos, cabendo ao Estado apenas reconhecê-los. Ocorre que, nada obstante a promulgação desse documento e a incorporação ao ordenamento jurídico de seus signatários, a violência segue sendo uma das características da sociedade atual, em que Estado e comunidade pouco contribuem para reduzi-la no país ou no exterior.
Quando da fundação da Anistia Internacional -movimento do qual, enquanto teve um ramo no Brasil, participei-, seu desiderato maior era reduzir a violência e assegurar direitos fundamentais, principalmente os daqueles que, encontrando-se sob a tutela do Estado, merecem um tratamento não de "vingança", mas de "justiça". E, decididamente, nós sempre nos opusemos às pressões e aos maus-tratos infligidos a acusados, principalmente de delitos de opinião e de natureza política.
O objetivo maior, estatutário inclusive, da Anistia é um dia se autodissolver, no momento em que a violência deixar de imperar no mundo, tendo como corolário maior a eliminação do desrespeito aos direitos fundamentais do ser humano.


Poucos conhecem o verdadeiro sentido da ética e da paz, não se preocupando com a dignidade humana


Ocorre que a sociedade atual perdeu, em grande parte, a noção de valores e, muito embora fale continuamente em ética e em paz, o que se vê é que poucos conhecem seu verdadeiro sentido, não se preocupando com a dignidade humana, além de seus próprios e egoísticos interesses. No plano internacional, Abu Ghraib não é senão o símbolo de um organismo de repressão enquistado em muitos Estados que se dizem civilizados, os quais buscam, na desmoralização do inimigo, a forma de obter, à força, informações, confissões ou a própria eliminação do "fardo" inútil que o inimigo ou o marginal representam.
Inclusive, discute-se na Suprema Corte norte-americana se o devido processo legal seria assegurado a estrangeiros a serem julgados por americanos ou por tribunais sob sua tutela, no exterior, havendo juristas e membros do governo que defendem a tese de que essa garantia democrática, que consta da emenda nš 5 à Constituição americana, só beneficiaria americanos e estrangeiros quando estes fossem julgados nos Estados Unidos.
Acontece que o terrorismo -que é uma das mais dramáticas formas de violência e de injustiça- resta fortalecido com a repressão unilateral exercida em mesmo nível de brutalidade. Como disse, recentemente, Sua Santidade ao presidente americano, não se combate o terrorismo com ódio e com violência, porque o ódio e a violência geram mais terrorismo. Esse drama, todavia, não é apenas internacional. Não se encontra somente na tresloucada invasão do Iraque, nas repressões desmedidas contra palestinos ou no fanatismo dos terroristas, que se alimentam dessa falsa visão de poder mediante agressão aos mais fortes, através da surpresa e do sangue dos inocentes.
Clinton, em palestra a que assisti em São Paulo, claramente respondeu à pergunta que lhe fizeram, sobre o Iraque, que a repressão unilateral não é o melhor caminho para combater a tragédia do terrorismo e que, quando presidente, conseguiu a celebração de acordo entre palestinos e israelenses que manteve relativa paz de 1993 a 2000.
O Brasil, infelizmente, vive também seu drama de violação de direitos fundamentais, em que o narcotráfico, os seqüestros, a violência urbana e rural -inclusive perpetrada por movimentos acobertados pelo Estado para desestabilização da ordem e da lei- levam à insegurança plena e aos lamentáveis episódios que vimos nas prisões do Rio de Janeiro, hoje dominadas por grupos que aparentam ter mais força do que o próprio governo do Estado.
E a violência é um corolário natural desse choque em que o desrespeito a direitos fundamentais decorre, muitas vezes, da própria falta de nitidez nas relações entre o Estado e o crime organizado. A excessiva tolerância e a falta de valores e princípios daqueles que governam são semente maior dessa confusão entre repressores e marginais, fazendo com que o povo termine temendo mais a ação policial que a ação criminosa, como a Folha demonstrou em reportagem passada.
A verdade é que quem não vive como pensa termina pensando como vive.
Creio que seja necessário uma cruzada, no Brasil, semelhante à da Anistia Internacional, no que concerne ao respeito aos direitos fundamentais, para que se principie a reverter esse quadro de insegurança, criando-se talvez movimento parecido àquele que levou Gandhi a se opor ao domínio inglês exclusivamente pelo uso da "não-violência".
Algo deve ser feito, mas o certo é que a reação sangrenta e desmedida, no plano internacional ou nacional, em que se nivelam repressores e reprimidos não tem se revelado o melhor caminho.

Ives Gandra da Silva Martins, 69, advogado tributarista, professor emérito da Universidade Mackenzie e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.


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