São Paulo, sexta-feira, 16 de julho de 2004

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JOSÉ SARNEY

O sofá das infidelidades

A cada eleição, todas as forças imaginativas se conjugam para evitar deslealdades partidárias. No pleito passado, o próprio Tribunal Superior Eleitoral tomou a frente e quis meter uma camisa-de-força nos partidos. O resultado foi uma balbúrdia sem tamanho: tornou caótico o quadro partidário, a não ser nos acordos escondidos, muitos deles bem cabeludos. É que o problema é bem mais profundo.
O Brasil é muito grande (frase rara), e suas realidades são totalmente diversas, para não dizer que, freqüentemente, opostas. O operário de São Paulo é classe média no Nordeste. O empresário do Nordeste é vendedor ambulante na 25 de Março paulistana. Se na paisagem humana é assim, pior nas paisagens sociais.
No Brasil, partidos nacionais e homogêneos são contra as leis do possível. Ulisses dizia que ninguém morava na União. Eu acrescento: mora no município. Em cada um deles existe um partido com suas rivalidades autônomas, independentes de qualquer legenda. Nas eleições municipais, os eleitores atiram com pistola mais de perto, deixam de lado razões doutrinárias ou políticas.
"Não me peçam coerência", já dizia Fernando Pessoa. Esse é o lema das eleições municipais. Tome-se o exemplo do Rio de Janeiro, o mais falado. Atravessou a baía, passou a ponte, e já um partido é outro, sendo o mesmo que o outro era. O mesmo acontece no país inteiro, fenômeno autêntico da irrealidade do quadro partidário, dito nacional, na verdade distrital.
Há bastante tempo, na década de 70, fiz uma conferência na Escola Superior de Guerra sobre partidos políticos. E repetia a mais simples de todas as definições sobre eles: "É um grupo de pressão que, na sociedade democrática, não deseja influenciar o poder, mas deseja exercer o poder" e, para isso, todas as alianças são buscadas, mesmo que não sejam coerentes. Passam a ser as regras do embate político, o jogo do poder, que muitas vezes se transforma numa guerra. Aliás, foi Lênin que propôs que à política fossem aplicadas as leis da guerra: aniquilar o inimigo de todas as maneiras e com todas as armas. Daí essa amoralidade ou imoralidade de que os fins justificam os meios.
As alianças que se formam podem parecer estranhas, mas são legítimas, porque representativas. É o caso da China, que está lutando para evitar a entrada do Viagra temendo que ele venha a destruir o seu programa de natalidade, assanhando os chineses. Assim, suspendeu as patentes e começou a enfrentar as falsificações, porque a realidade necessária ninguém segura, principalmente o desejo da ilusão colorida de uma aliança. O mesmo que acontece, com mais praticidade e menos prazer, com as nossas eleições municipais.
Querer evitá-las é o mesmo que tirar o sofá da sala. Só que esse é um sofá que não tem como sair e será o permanente lugar das infidelidades, com encontro marcado, de quatro em quatro anos.
Em Cingapura, também foi proibido chiclete. Depois de muito protesto, inclusive dos americanos, foi liberado, desde que usado com receita médica.
Não é o caso de Niterói nem de São Paulo.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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