São Paulo, sexta-feira, 16 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Saúde, biotecnologia e auto-suficiência

ISAIAS RAW

Uma das preocupações de todas as correntes políticas é o desenvolvimento de tecnologia que leve à criação de empregos. Nesse contexto, num esforço de estabilização econômica, retorna o que foi considerado retrógrado: a substituição de importações.
Um dos mais importantes exemplos na última década é a auto-suficiência na produção de vacinas. A vacinação gratuita vem permitindo eliminar doenças infeciosas, que podem ser prevenidas, como causa de mortalidade infantil. Vacinas antes oferecidas a quem podia pagar de R$ 50 a R$ 100 por dose tornaram-se universalmente disponíveis. Todas as crianças brasileiras recebem as vacinas contra tétano, difteria, coqueluche, sarampo, tuberculose (BCG) e, a partir deste ano, receberão contra hepatite B.
A vacina contra hepatite B do Instituto Butantan, agora aprovada num enorme ensaio clínico, representa talvez um dos melhores exemplos de substituição de importação. A vacina que, quando do começo de seu desenvolvimento, custaria US$ 24 por criança é hoje produzida por menos de US$ 1 (três doses).
Não se trata apenas de economia, mas de viabilizar o seu uso por toda a população, além de oferecer a oportunidade de desenvolvimento tecnológico. Novos desenvolvimentos, como a vacina quádrupla (difteria-tétano-coqueluche-hemofilos B, produzida pela Fiocruz com vacinas do Butantan) e, proximamente, a quíntupla (que inclui a hepatite B), facilitarão a vacinação de crianças e a diminuição dos custos.
Mais do que os recém-nascidos, a vacina contra hepatite B começa a cobrir toda a população jovem, que, iniciando sua atividade sexual, tem grande chance de adquirir a doença.
A produção da vacina da influenza e da difteria e tétano vem permitindo estender a prevenção aos maiores de 60 anos, evitando a custosa hospitalização e aumentando a sobrevida. Só na vacina contra influenza, a participação do Butantan economiza US$ 30 milhões por ano, quando comparada ao preço Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) de 1999. Sem essa economia o programa seria inviável.
Essas iniciativas de instituições públicas competentes, bem gerenciadas (através da Fundação Butantan), produzindo exclusivamente para o Ministério da Saúde, não têm candidatos no setor privado. Hoje a produção de vacinas pelo Butantan economiza quase uma centena de milhão de dólares.


Biotecnologia tornou-se uma palavra mágica, que esconde um desejo poucas vezes transformado em realidade


Depois de um esforço inicial do Ministério da Saúde, que investiu na construção de plantas de produção do Butantan, é o Butantan quem na prática financia o ministério, desenvolvendo e produzindo as vacinas, que são entregues para serem retestadas (para garantia dos usuários) e só então liberada para uso e pagas.
Biotecnologia tornou-se uma palavra mágica, que esconde um desejo poucas vezes transformado em realidade. O Butantan está fazendo um importante esforço para produzir alguns biofármacos de interesse social, como o surfactante pulmonar, cujo uso evitará a morte de cerca de 150 mil bebês prematuros todos os anos. Como na produção da vacina contra a hepatite B, numa luta contra interesses privados, o Butantan desenvolveu importante competência na tecnologia de produção de hemoderivados, aguardando tão-somente os investimentos públicos para concretizar mais uma iniciativa prioritária e estratégica, criando empregos e economizando US$ 200 milhões por ano.
Mesmo no Primeiro Mundo, estudos mostram que, entre as pesquisa de laboratório e a implantação da produção são exigidos em média de um a 11 anos. O desenvolvimento de bancada, realizado nas universidades, praticamente nunca chega à tecnologia em condições que interessem a uma empresa privada.
A chamada (bio)tecnologia é, na maioria das vezes, pesquisa de bancada, que precisa de muito tempo e enormes recursos para atingir o mercado e produzir o impacto econômico desejado. Talvez a única exceção tenha sido a criação, por um professor da UFMG, da Biobraz, que produzia toda a insulina que o país demandava. É um produto da maior importância em saúde e da maior prioridade econômica e estratégica: cerca de 6% da população demanda insulina.
É fácil falar em política industrial e desenvolvimento tecnológico. O governo não cria oportunidades. Seus programas são importantes abstrações, que só se concretizam quando existem iniciativas competentes para que ele, governo, apóie. Como outras atividades públicas, que estarão sob escrutínio a partir de janeiro, esta merece especial atenção. Não esperamos menos de quem venha a assumir as rédeas do governo em 2003.


Isaias Raw, 75, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, é presidente da Fundação Butantan e da Developing Country Vaccine Manufature Network,que congrega os produtores de 60% de todas as vacinas infantis. Organizou o Centro de Biotecnologia do Instituto Butantan.



Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Francisco Neves: A força da comunidade
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.