São Paulo, quinta-feira, 16 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

São Malan

DENIS LERRER ROSENFIELD

O governo atual não reconhece ainda explicitamente, mas está em curso um movimento de canonização do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan. Todo o palavreado relativo ao "neoliberalismo" do governo anterior nada mais era do que uma distração visando provar a persistência e o vigor de um candidato a uma honraria desse tipo. Como se sabe, são poucos os que, na história da igreja, mereceram uma tal distinção. Todos, sem exceção, passaram por um período de provação, experiência extremamente dura, na qual se testava, entre outras coisas, a firmeza da convicção.
Quando o PT de antanho fazia o jogo de cena de que seria necessário mudar tudo o que estava aí, com especial menção ao que se fazia no Ministério da Fazenda e no Banco Central, ele urdia uma jogada eleitoral de cunho mais profundo, pois tinha como objetivo, na verdade, a continuidade do que estava lá ou do que, agora, está aqui. Nesse aqui e acolá, a mudança aparecia como o contrário da continuidade, quando nada mais era do que o ardil de uns poucos eleitos, que conseguiam, assim, fazer passar a sua mensagem.
Se os responsáveis pela política econômica do governo anterior não tivessem resistido às pressões, que são formas veladas de tentação, nenhuma mudança de poder teria ocorrido e os portadores da boa nova não teriam cumprido os seus desígnios. Nada de novo teria acontecido e não teríamos a bela campanha publicitária de Duda Mendonça, esse apóstolo do novo petismo. Que ninguém fale dos ganhos fabulosos, pois isso nada mais é do que uma ninharia diante da grandeza da missão.


Enquanto resultado do milagre, o que era "neoliberal" tornou-se "de esquerda"


Nada como milagres que atestem a boa causa. Sem eles não haveria canonização, pois faltariam razões. Para que um milagre se produza, é condição necessária a irrupção de algo que apareça como novo, algo que rompa ou aparente romper com a ordem natural das coisas. Deve-se, portanto, criar um clima para que algo não corriqueiro, não usual possa acontecer.
O "denuncismo", hoje tão vilipendiado, foi um instrumento de instauração de um processo contra o governo FHC, contra os políticos de "outros credos", com o intuito de produzir a aparência do caos e da desordem. Tivemos, então, a alta estratosférica do risco Brasil, a explosão do dólar, o perigo da crise institucional, preparando-se, dessa maneira, o caminho da conversão à política anterior. Não há salvação sem um ambiente que prefigure, de certa maneira, um tipo de juízo -senão final, pelo menos suficientemente urgente- de passagem para uma nova etapa religiosa.
Foi preciso potencializar o medo da ruptura para que pudesse surgir a impressão do milagre, afinal concretizado na pura manutenção da política anterior. Enquanto resultado do milagre, o que era "neoliberal" tornou-se "de esquerda". Esses nomes que tanto atrapalham mostram os insondáveis desígnios da Providência.
Se o milagre petista não tivesse ocorrido, Malan seria tão simplesmente um ex-ministro, santo não seria, e o PT não poderia se arrogar a posição de partido da verdade. Ele seria um partido qualquer, submetido às agruras de eleições e aos ritos laicos de alternância de poder. Seus quadros não teriam os confortos materiais oriundos do aparelhamento do Estado e o caixa do partido não transbordaria de recursos.
O olhar religioso, como o psicanalítico, exige uma particular atenção ao avesso das coisas. Por exemplo, o financiamento das campanhas eleitorais do partido no poder seria apenas o fruto de um árduo trabalho, resultado do esforço de alguns personagens, como Waldomiro Diniz, Delúbio Soares e tantos outros que, no futuro, serão também candidatos a santos da igreja petista. Os virtuosos serão, enfim, recompensados!
Quando, no 7 de Setembro e em declarações posteriores, nossos governantes dignificaram mais uma vez a política macroeconômica como fruto de suas ações, eles não deixaram de ter, em certo sentido, razão, pois eles criaram, indiretamente, condições para que ela pudesse vigorar e prosperar. O seu preço, porém, consiste na canonização de Malan, cuja cerimônia, especula-se, será presidida por Antonio Palocci. As afinidades eletivas são evidentes e não exigem nenhuma explicação. Inclusive, o nacionalismo tão falado recentemente é nada mais do que a forma profana de uma manifestação religiosa.
As brigas entre os membros do atual governo, por sua vez, inscrevem-se nas invejas "naturais" decorrentes de qualquer tipo de canonização, pois os candidatos abundam e os eleitos são poucos. Mas, no final das contas -que podem ser entendidas em moeda sonante-, os contos políticos nos relatam histórias milagrosas, as quais temos dificuldades de decifrar.

Denis Lerrer Rosenfield, 53, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política".


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