São Paulo, quinta-feira, 16 de setembro de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES São Malan
DENIS LERRER ROSENFIELD
Nada como milagres que atestem a boa causa. Sem eles não haveria canonização, pois faltariam razões. Para que um milagre se produza, é condição necessária a irrupção de algo que apareça como novo, algo que rompa ou aparente romper com a ordem natural das coisas. Deve-se, portanto, criar um clima para que algo não corriqueiro, não usual possa acontecer. O "denuncismo", hoje tão vilipendiado, foi um instrumento de instauração de um processo contra o governo FHC, contra os políticos de "outros credos", com o intuito de produzir a aparência do caos e da desordem. Tivemos, então, a alta estratosférica do risco Brasil, a explosão do dólar, o perigo da crise institucional, preparando-se, dessa maneira, o caminho da conversão à política anterior. Não há salvação sem um ambiente que prefigure, de certa maneira, um tipo de juízo -senão final, pelo menos suficientemente urgente- de passagem para uma nova etapa religiosa. Foi preciso potencializar o medo da ruptura para que pudesse surgir a impressão do milagre, afinal concretizado na pura manutenção da política anterior. Enquanto resultado do milagre, o que era "neoliberal" tornou-se "de esquerda". Esses nomes que tanto atrapalham mostram os insondáveis desígnios da Providência. Se o milagre petista não tivesse ocorrido, Malan seria tão simplesmente um ex-ministro, santo não seria, e o PT não poderia se arrogar a posição de partido da verdade. Ele seria um partido qualquer, submetido às agruras de eleições e aos ritos laicos de alternância de poder. Seus quadros não teriam os confortos materiais oriundos do aparelhamento do Estado e o caixa do partido não transbordaria de recursos. O olhar religioso, como o psicanalítico, exige uma particular atenção ao avesso das coisas. Por exemplo, o financiamento das campanhas eleitorais do partido no poder seria apenas o fruto de um árduo trabalho, resultado do esforço de alguns personagens, como Waldomiro Diniz, Delúbio Soares e tantos outros que, no futuro, serão também candidatos a santos da igreja petista. Os virtuosos serão, enfim, recompensados! Quando, no 7 de Setembro e em declarações posteriores, nossos governantes dignificaram mais uma vez a política macroeconômica como fruto de suas ações, eles não deixaram de ter, em certo sentido, razão, pois eles criaram, indiretamente, condições para que ela pudesse vigorar e prosperar. O seu preço, porém, consiste na canonização de Malan, cuja cerimônia, especula-se, será presidida por Antonio Palocci. As afinidades eletivas são evidentes e não exigem nenhuma explicação. Inclusive, o nacionalismo tão falado recentemente é nada mais do que a forma profana de uma manifestação religiosa. As brigas entre os membros do atual governo, por sua vez, inscrevem-se nas invejas "naturais" decorrentes de qualquer tipo de canonização, pois os candidatos abundam e os eleitos são poucos. Mas, no final das contas -que podem ser entendidas em moeda sonante-, os contos políticos nos relatam histórias milagrosas, as quais temos dificuldades de decifrar. Denis Lerrer Rosenfield, 53, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política". Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Jorge Werthein: Por uma escola de paz Índice |
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