São Paulo, sábado, 16 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

É boa a idéia de criar uma Justiça Agrária?

SIM

Muletas agrárias

RAUL JUNGMANN

As varas agrárias são uma necessidade e uma dívida. Necessidade posto que, teoricamente, ajudarão a acelerar nossa lenta reforma agrária, o que deverá se refletir na redução dos conflitos. Dívida -histórica, diga-se- dado que previstas desde quando o regime autoritário trouxe para o âmbito do Estado, em novembro de 1964, através de mudança constitucional e, em seguida, via Estatuto da Terra, o compromisso com a transformação da nossa estrutura agrária, democratizando-a. Mas não são, em absoluto, panacéia para os males de que padece a nossa reforma.
Esses são essencialmente três.
Primeiramente, a falta de fontes de financiamento saudáveis e infensas a cortes periódicos em decorrência de choques fiscais. Ao contrário das suas primas ricas, saúde e educação, a reforma agrária não possui fontes de financiamento vinculadas aos seus gastos mediante lei, sendo sempre forte candidata a pagar o pato de eventuais ajustes e/ou mudanças de prioridade ao sabor das conjunturas políticas. O que impede o necessário planejamento de médio e longo prazos, descontinuando-o, além de travar ou adiar a consolidação dos assentamentos.
Em segundo lugar, as varas agrárias não tocam na questão, para nós essencial, do modelo centralizado da reforma que temos, concebido no contexto da doutrina de segurança nacional pelo regime militar, num Estado quase unitário, pouco ou nada federativo. Disso resulta um absurdo em um país de dimensões continentais: nem Estados, nem municípios têm nenhuma obrigação ou compromisso legal com a reforma agrária! Só Brasília, e apenas ela, pode realizá-la, para o bem e para o mal. A reforma agrária permanece sendo um monopólio federal, ainda que tenhamos uma Constituição federativa e descentralizante...
Resquício de uma visão superada pelos fatos, atribuem-se apenas ao presidente da República poderes para enfrentar e desapropriar o latifúndio, enquanto governadores de Estados tão poderosos e complexos, além de industrializados, a exemplo de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, não podem fazê-lo. Muito embora sejam eles responsáveis pela segurança pública e pela defesa civil em seus territórios e comandem corporações militares em alguns casos numericamente superiores ao Exército nacional.
A título de pálida comparação, o centralismo improdutivo da reforma agrária equivaleria, hoje, na área da saúde, a extinguir o SUS, retornando ao modelo do Inamps, e, na área da educação, a fazer o mesmo com o Fundef.
Pois bem, o governo do PT, por pressão do MST e congêneres, não move uma palha na direção da descentralização. Ao contrário: está reforçando o status quo ao abrir concurso para o Incra, cuja função, em um sistema nacional de reforma agrária com a efetiva participação de Estados e municípios, não deveria ser jamais a de executar a reestruturação fundiária, mas coordená-la, definir os seus parâmetros e promover a necessária articulação entre instâncias e agentes públicos e privados.
Por fim, a questão do modelo. Para que queremos uma reforma agrária? Sem dúvida, não mais pelos motivos que levaram um Alberto Passos Guimarães a fazer a sua defesa no clássico, embora equivocado, "Quatro Séculos de Latifúndio", quais sejam, a industrialização brasileira -pois essa já se deu. Também não será a reforma, nesses tempos do agronegócio, a equacionar a nossa produção de alimentos.
Resta a ela o papel de inclusão -justa, digna, necessária e pela via produtiva, portanto não assistencial- de uma parcela dos excluídos do campo, transformando-os em agricultores familiares. O que significa assentados apoiados por políticas de assistência técnica e creditícia especiais, competindo e correndo os riscos, ainda que mitigados, do e no mercado.
Aqui, é forçoso reconhecer que apenas uma parcela dos incluídos via assentamentos estará um dia em condições mínimas e desejadas de produtividade e competitividade. As causas disso, além do financiamento precário e da centralização estúpida, remetem à relação de tutela do Estado com os sem-terra, agravada pelo governo Lula, e destes com o projeto político de suas lideranças -que é o de se instituírem clientes do poder público e apenas retoricamente agentes produtivos de fato.


Raul Jungmann, 52, é deputado federal pelo PPS-PE. Foi presidente do Ibama (1995-96) e ministro de Política Fundiária (governo FHC, primeiro mandato) e do Desenvolvimento Agrário (governo FHC, segundo mandato).


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