São Paulo, quinta-feira, 16 de novembro de 2006

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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Alma tirânica - 1

A VIOLÊNCIA política, antiga matéria poética, é sublime em Shakespeare. Convido o leitor a seguir suas pistas. Ricardo 3º abre com o príncipe-guerreiro situando-se na ordem universal: seu autoconhecimento soberbo e melancólico desvenda sua própria essência, espelho do tirano. O sentido cósmico dessa reflexão aflora no vínculo entre tempo físico e tempo humano, nas imagens que ligam as estações do ano aos feitos de sua estirpe: "... inverno de nosso descontentamento / tornado verão por este sol (sun) de York".
Inverno e verão, revés e vitória: o ciclo natural e a duração política seguem um só movimento: a dinâmica das estações é análoga à soberania do príncipe, que reverte o inverno em verão e a desdita em êxito. Corpo físico e corpo político unificam-se, energia natural e força régia têm a mesma medida, o curso das coisas dobra-se à vontade do poderoso. Nenhum ente superior (deuses, fortuna, ética, lei) preside o acontecer.
Astro-rei e príncipe-real fundem-se no jogo polissêmico (quase gráfico, sobretudo sonoro) -sun-son, sol-filho-, que acumula e projeta sentidos físico-políticos na Casa de York, imagem que desencadeia a série de correspondências e oposições: clima sombrio e alma descontente, esplendor estival e herói jubiloso. Com veloz e engenhosa solução literária, Shakespeare regenera o muito antigo nexo entre constituições climáticas e civis: a forma poética sustenta o sentido forte, material e volitivo que modela o personagem. O filho-sol de York quebra os circuitos do tempo e da política, rompe e refaz o equilíbrio do mundo.
O contraste inverno-verão ressoa na antítese guerra-paz: "Agora, nossos cruéis alarmes converteram-se em alegres encontros / nossas marchas medonhas em delicioso compasso / O carrancudo combate alisou a fronte cerrada / e agora, em vez de montar corcéis farpados / para assustar almas de inimigos timoratos / ele dança, vivaz, no quarto de uma dama / ao lascivo deleite do alaúde".
Os passos e sons desmedidos e terríveis da batalha transformam-se na cadência alegre da música e da dança. O princípio destrutivo converte-se em seu contrário e companheiro congênito, o erotismo regenerador. Conjugados e contraditórios, ódio e amor geram as rupturas e harmonias do mundo. Mas Amizade é fugaz, Combate é seu parceiro no interlúdio festivo; o estado de guerra não morre com a trégua da paz, só abranda o semblante.
Este, o solo da alma tirânica. Dentre as forças poderosas em jogo, a palavra (diz-se, há muito) iguala exércitos: há, pois, que abater a voz adversa e assestar a retórica da propaganda, apta a dar-lhe aparência amorosa e pacífica, a inverter seus males em bens. A alma tirânica é feia, falsa, malévola, solitária. A continuar.


MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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