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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
Alma
tirânica - 1
A VIOLÊNCIA política, antiga
matéria poética, é sublime
em Shakespeare. Convido o
leitor a seguir suas pistas.
Ricardo 3º abre com o príncipe-guerreiro situando-se na ordem
universal: seu autoconhecimento
soberbo e melancólico desvenda
sua própria essência, espelho do tirano. O sentido cósmico dessa reflexão aflora no vínculo entre tempo físico e tempo humano, nas imagens que ligam as estações do ano aos feitos de sua estirpe: "... inverno de nosso descontentamento /
tornado verão por este sol (sun) de
York".
Inverno e verão, revés e vitória: o ciclo natural e a duração
política seguem um só movimento:
a dinâmica das estações é análoga à
soberania do príncipe, que reverte
o inverno em verão e a desdita em
êxito. Corpo físico e corpo político
unificam-se, energia natural e força régia têm a mesma medida, o
curso das coisas dobra-se à vontade do poderoso. Nenhum ente superior (deuses, fortuna, ética, lei)
preside o acontecer.
Astro-rei e príncipe-real fundem-se no jogo polissêmico (quase
gráfico, sobretudo sonoro) -sun-son, sol-filho-, que acumula e projeta sentidos físico-políticos na Casa de York, imagem que desencadeia a série de correspondências e
oposições: clima sombrio e alma
descontente, esplendor estival e
herói jubiloso. Com veloz e engenhosa solução literária, Shakespeare regenera o muito antigo nexo entre constituições climáticas e
civis: a forma poética sustenta o
sentido forte, material e volitivo
que modela o personagem. O filho-sol de York quebra os circuitos do
tempo e da política, rompe e refaz o
equilíbrio do mundo.
O contraste inverno-verão ressoa na antítese guerra-paz: "Agora,
nossos cruéis alarmes converteram-se em alegres encontros / nossas marchas medonhas em delicioso compasso / O carrancudo combate alisou a fronte cerrada / e agora, em vez de montar corcéis farpados / para assustar almas de inimigos timoratos / ele dança, vivaz, no
quarto de uma dama / ao lascivo
deleite do alaúde".
Os passos e sons desmedidos e
terríveis da batalha transformam-se na cadência alegre da música e
da dança. O princípio destrutivo
converte-se em seu contrário e
companheiro congênito, o erotismo regenerador. Conjugados e
contraditórios, ódio e amor geram
as rupturas e harmonias do mundo. Mas Amizade é fugaz, Combate
é seu parceiro no interlúdio festivo;
o estado de guerra não morre com a
trégua da paz, só abranda o semblante.
Este, o solo da alma tirânica.
Dentre as forças poderosas em jogo, a palavra (diz-se, há muito)
iguala exércitos: há, pois, que abater a voz adversa e assestar a retórica da propaganda, apta a dar-lhe
aparência amorosa e pacífica, a inverter seus males em bens. A alma
tirânica é feia, falsa, malévola, solitária. A continuar.
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às
quintas-feiras nesta coluna.
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