São Paulo, Quinta-feira, 16 de Dezembro de 1999


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Para chegar ao século 21


Ou alcançamos os países desenvolvidos agora ou a distância se tornará cada vez maior


JAIME PINSKY

A história é ingrata para quem quer tirar lições apressadas: com o tempo ela costuma revelar a irrelevância de eventos dados e cantados como "históricos". Manchetes de jornal, capas de revista e, principalmente, assuntos explorados em horas de TV não merecem, frequentemente, nem sequer notas de rodapé em livros dos historiadores. Pronunciamentos anunciados como "históricos", tanto feitos por governantes como por oposicionistas, são logo esquecidos por falta de consistência. Mesmo eventos que abalaram a sociedade, como a lenta morte de Tancredo, considerado na época um herói do porte de Tiradentes -e hoje uma página virada da nossa história política-, ou a promulgação da atual Constituição pós-regime militar, tida como ponto de partida de nossa redenção (a famosa Constituição cidadã) -e atualmente criticada e bombardeada por gregos e troianos-, parecem destinados ao esquecimento.
Por outro lado, essa mesma história, que se poderia pensar ingrata, é extremamente generosa quando consagra episódios aparentemente secundários ou destaca o processo social lento e desapercebido pelos contemporâneos. Será que alguém, na época de Jesus, imaginaria a importância que o cristianismo desempenharia na história, ou será que os inconfidentes de Vila Rica suporiam que seu movimento seria consagrado como a principal manifestação de identidade nacional "avant la lettre"?
Há, contudo, situações em que toda a sociedade se dá conta de viver um momento de ruptura e possibilidade de reconstrução, de superação de vícios antigos e de abertura de novas perspectivas. Foi o caso da revolução americana, quando os cidadãos do leste americano romperam os vínculos com a metrópole e propuseram uma sociedade em que todas as pessoas pudessem "ter direito à felicidade", na feliz formulação de seus líderes. E é o caso do Brasil de hoje. Sim, pois neste momento estamos sendo convidados a escolher entre o que temos (um país desigual, com uma elite arrogante e um povo dissimulado) e o que podemos vir a ter (um tecido social direcionado a superar nossos vícios de origem e construir um país mais rico e justo).
Cabe-nos, enfim, decidir se queremos entrar no novo milênio como um país do século 21 ou como uma grande "república bananeira", nação que nunca conseguiu transformar seu potencial em ato.
E para chegar ao século 21 não basta abrir garrafas de champanha, soltar fogos, pular sete ondas e beijar conhecidos e desconhecidos no momento da contagem regressiva. Teremos, como nação, que superar anacronismos e alterar padrões de comportamento que, de tão entranhados, parecem parte de nossa natureza. Do contrário, a entrada do novo milênio será mais uma simples alteração de calendário, outra transição sem mudança, na feliz formulação do saudoso brasilianista Peter Eisenberg.
Antes de mais nada, teremos que superar ranços do século 18 e chegar ao 19, resolvendo, em definitivo, questões que foram equacionadas há 200 anos em outros países, como a questão fundiária. É de todo inaceitável que pessoas ainda caminhem pelas estradas com foices e enxadas reivindicando um pedaço de terra. Como diria Francisco Iglésias, "que coisa mais antiga!". Parece, de fato, um pedaço de medievo solto em 1999. Mesmo que pequenas propriedades sejam improdutivas, em termos de agricultura moderna, é um absurdo reconhecido por toda a sociedade que ainda haja neste país a figura dos sem-terra.
Depois temos que sair do século 19 e chegar ao 20. Aí temos muito a fazer: acabar com o trabalho infantil, que é um resquício dos primórdios da Revolução Industrial. Integrar maiores parcelas da população no projeto nacional, pois não se concebe uma nação sem cidadãos. Diminuir drasticamente a corrupção e as mordomias, fazendo com que as leis valham para todos.
Agora, para chegar ao século 21, além disso tudo, temos que perceber o que está acontecendo no mundo e fazer nossas opções. A globalização provocou a rápida aceleração do tempo histórico. Nossa época é mais de rupturas do que de continuidades, e não teremos muitas chances: ou alcançamos os países desenvolvidos agora ou a distância entre nós e eles se tornará cada vez maior.
A questão não é mais quem possui as melhores terras ou o subsolo mais rico, embora alimentos, matéria-prima e combustíveis sejam essenciais. Nem quem produz mais aço ou fabrica as melhores máquinas industriais, embora isso não seja desprezível.
Ocorre que aço e alimentos, máquinas e matéria-prima podem ser comprados, e há muitos vendedores desses produtos. O que é mais difícil de comprar são cabeças pensantes. Não me refiro a simples profissionais do intelecto ou da ciência, mas verdadeiros intelectuais e cientistas. A criadores de teorias, a pensadores originais, a gente que elabora software, não apenas consome. Àqueles que, além de especialistas, são donos de cultura geral que lhes permite perceber a inserção do particular no geral. E gente assim só se forma lendo bons livros, estudando com bons professores e pesquisando em boas universidades.
Se não fizermos, já, a opção preferencial pela educação, bye bye, século 21.


Jaime Pinsky, 59, doutor e livre-docente pela USP (Universidade de São Paulo), é professor titular de história aposentado da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), autor de vários livros, como "Cidadania e Educação" e "Origens do Nacionalismo Judaico", e diretor da editora Contexto.
E-mail: pinsky@editoracontexto.com.br




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