São Paulo, Quinta-feira, 16 de Dezembro de 1999


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Populismo teocrático


O Rio vem se constituindo em laboratório de fórmulas tão inéditas quanto perigosas


NELSON ROJAS DE CARVALHO

Se a criatividade representa uma das marcas características da população do Rio de Janeiro, é hora de separarmos o joio do trigo, de distinguirmos as manifestações criativas originadas nos segmentos populares das inventivas bizarras e perigosas das nossas elites (refiro-me aqui em especial às nossas elites políticas). Ora, no que se refere às últimas, o Rio infelizmente vem se constituindo em laboratório de fórmulas políticas tão inéditas quanto perigosas, sem nenhuma referência nos dicionários especializados, fórmulas que demandam preocupação e atenção dos analistas de boa-fé.
Certamente, para aqueles que olharam de forma crítica o experimento do socialismo de tintas morenas no início dos anos 80, a coalizão evangélica que hoje governa o Estado traz uma fórmula de maior gravidade: como nos Estados teocráticos, assistimos à despolitização do espaço público; vivemos um retrocesso em nossa experiência republicana de separação entre o Estado e a Igreja; vemo-nos diante de uma liderança inimputável por seus atos administrativos, já que é porta-voz da palavra de Deus.
O socialismo moreno dos anos 80 deve, certamente, ser localizado -sob pena de injustiça- analítica no rol dos governos populistas de esquerda. Da sua liderança maior, o então governador Leonel Brizola, podia-se claramente identificar a opção preferencial pela comunicação direta com as massas -característica comum a todas as lideranças populistas- e o desconforto diante de instâncias da sociedade dotadas de organização autônoma -como aquelas agrupadas em torno da Faferj (Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio) e da Famerj (Federação das Associações do Moradores do Estado do Rio)-, associações que não por acaso sucumbiram durante o primeiro governo do PDT.
Vale a ressalva, no entanto, de que o conteúdo do apelo populista de então era de natureza política, e ademais de esquerda: acenava-se, pelo menos no plano retórico, para a incorporação da periferia social ao centro, por meio da educação, do programa dos Cieps.
Se o programa social do primeiro PDT, centrado na incorporação pela educação, mostrou-se extremamente limitado no plano objetivo, na dimensão discursiva esse programa ocupou lugar central e decisivo -representou, e de alguma maneira ainda representa, a marca da liderança de Leonel Brizola.
A coalizão evangélica hoje no poder, agrupando segmentos do PDT e do PT, aprofundou a dimensão populista da primeira gestão do partido no governo do Rio: ao lado da centralização de todas as assessorias de comunicação no gabinete do chefe do Executivo, a comunicação direta com as massas assumiu a forma mais moderna de "governo radiofônico". Decreta-se, demite-se, nomeia-se, enfim, governa-se pelo rádio, veículo hoje caro às lideranças populistas. Perdeu, contudo, o adjetivo de esquerda: é impossível localizar um programa de inclusão social -marca da esquerda- que caracterize o atual governo, nem mesmo no plano discursivo.
O populismo de esquerda transmutou-se numa experiência absolutamente inédita em nossa história política: aparece como um populismo teocrático. Nova, por paradoxal que pareça, na gravidade de seu anacronismo: numa fusão de fato entre governo e religião. Da posse do governador, embalada por um culto evangélico, aos seus programas de invocação religiosa no rádio, não se pode deixar de concluir que se vive essa modalidade bizarra de populismo no Estado do Rio. Modalidade que despolitiza a arena pública e a representação; que funda um espaço em que o chefe do Executivo é inimputável por seus atos, já que porta-voz de Deus. Aí reside a chave do paradoxo de um governo que, de acordo com as pesquisas, ao mesmo tempo em que ostenta altos índices de popularidade é reprovado em todas as suas políticas setoriais: saúde, educação, segurança, emprego.
Se a oposição direita-esquerda hoje para muitos parece anacrônica, hoje no Rio de Janeiro vivemos uma situação política que fere nossa tradição republicana e nos conduz a um passado ainda mais distante do daquela disjuntiva, passado que parecia superado pelo processo civilizatório. No que se refere ao governo do Estado, vivemos uma situação em que estamos de fato não para além, mas para aquém da esquerda e da direita. De forma totalmente inédita e infeliz voltamos a um período anterior à Idade do Esclarecimento, período em que a política se confundia com a religião.


Nelson Rojas de Carvalho, 37, cientista político, é doutorando pelo Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e professor-assistente da Universidade Candido Mendes.



Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Jaime Pinsky: Para chegar ao século 21

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.