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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Social fora de foco
O governo Lula aderiu à idéia de
"focalizar" as políticas sociais.
Com isso, confirmou que está perdido.
Focalizar as políticas sociais significa
dirigir apenas aos mais carentes os recursos disponíveis para o social. A focalização se opõe a políticas ditas universais: destinadas a todos. Segundo o
raciocínio da focalização, como o orçamento é limitado, precisa haver fila.
Os mais pobres devem ser os primeiros na fila. Grande mal do Brasil, dizem, é que os benefícios sociais vão
em peso para quem menos precisa deles: a classe média, que, por exemplo,
frequenta as universidades públicas.
Focalizar parece, portanto, exigência
de bom senso e de equidade. Nos Estados Unidos, onde fraqueja agora a
imaginação transformadora, os filósofos se juntam aos técnicos para alardear as excelências dessa orientação.
Não falta no Brasil quem os siga.
Orientação errada. Política social é
ramo da política, não da caridade. Nenhum dos países europeus em que se
consolidou a social-democracia chegou lá priorizando políticas sociais focalizadas. Todos se dedicaram à construção de políticas universais de educação, saúde e previdência. Apenas
sobre essa base ofereceram ajuda
maior aos mais pobres. Reformaram
instituições para conseguir mais igualdade. Usaram política social para capacitar seus cidadãos, não para atenuar os efeitos da falta de democratização de oportunidades.
Um dos objetivos da opção pela universalidade é formar maioria que defenda o Estado social por se beneficiar
com ele. Outro é formar cidadania que
tenha a segurança social necessária
para constituir nação unida, capaz e
inovadora. Política social não é distribuição de esmola a necessitados enfileirados por ordem de suas necessidades. É construção nacional. Programas só para os mais pobres -em vez
de programas que incluam os mais
pobres- não resistem aos ciclos econômicos e políticos. Nos Estados Unidos, sede da propaganda em prol da
focalização, as políticas sociais universalizantes do presidente Roosevelt
perduram. A "guerra contra a pobreza" do presidente Johnson sumiu.
Esse debate tem significado especial
para nós. O Brasil só muda quando a
classe média se desgarra da plutocracia de viés colonial e passa a liderar
reorientação do país em proveito de
todos. Entre nós, focalização das políticas sociais é referência cifrada a
guerra contra a classe média. Guerra
que o governo atual conduz com afinco, convencido de ter na aliança entre
financistas e famintos base melhor para hegemonia política duradoura. O
exemplo mais claro do lado que o governo tomou será a campanha que ele
está prestes a deslanchar contra a já
destruída universidade pública e seus
já arruinados professores.
Política séria é tragédia e transformação. É trágico não poder concentrar no atendimento dos mais sofridos
os recursos limitados do Estado. Só
por meio dessa tragédia, porém, é que
se transforma sociedade de dependentes em república de cidadãos.
Não culpemos pelo desvio da focalização os tecnocratas que fazem no governo o que sempre apregoaram. Responsável é quem os chamou: o homem que -sem clareza, sem coragem e sem fidelidade a compromissos
históricos e eleitorais- ocupa a Presidência da República.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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