UOL




São Paulo, terça-feira, 16 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Social fora de foco

O governo Lula aderiu à idéia de "focalizar" as políticas sociais. Com isso, confirmou que está perdido.
Focalizar as políticas sociais significa dirigir apenas aos mais carentes os recursos disponíveis para o social. A focalização se opõe a políticas ditas universais: destinadas a todos. Segundo o raciocínio da focalização, como o orçamento é limitado, precisa haver fila. Os mais pobres devem ser os primeiros na fila. Grande mal do Brasil, dizem, é que os benefícios sociais vão em peso para quem menos precisa deles: a classe média, que, por exemplo, frequenta as universidades públicas.
Focalizar parece, portanto, exigência de bom senso e de equidade. Nos Estados Unidos, onde fraqueja agora a imaginação transformadora, os filósofos se juntam aos técnicos para alardear as excelências dessa orientação. Não falta no Brasil quem os siga.
Orientação errada. Política social é ramo da política, não da caridade. Nenhum dos países europeus em que se consolidou a social-democracia chegou lá priorizando políticas sociais focalizadas. Todos se dedicaram à construção de políticas universais de educação, saúde e previdência. Apenas sobre essa base ofereceram ajuda maior aos mais pobres. Reformaram instituições para conseguir mais igualdade. Usaram política social para capacitar seus cidadãos, não para atenuar os efeitos da falta de democratização de oportunidades.
Um dos objetivos da opção pela universalidade é formar maioria que defenda o Estado social por se beneficiar com ele. Outro é formar cidadania que tenha a segurança social necessária para constituir nação unida, capaz e inovadora. Política social não é distribuição de esmola a necessitados enfileirados por ordem de suas necessidades. É construção nacional. Programas só para os mais pobres -em vez de programas que incluam os mais pobres- não resistem aos ciclos econômicos e políticos. Nos Estados Unidos, sede da propaganda em prol da focalização, as políticas sociais universalizantes do presidente Roosevelt perduram. A "guerra contra a pobreza" do presidente Johnson sumiu.
Esse debate tem significado especial para nós. O Brasil só muda quando a classe média se desgarra da plutocracia de viés colonial e passa a liderar reorientação do país em proveito de todos. Entre nós, focalização das políticas sociais é referência cifrada a guerra contra a classe média. Guerra que o governo atual conduz com afinco, convencido de ter na aliança entre financistas e famintos base melhor para hegemonia política duradoura. O exemplo mais claro do lado que o governo tomou será a campanha que ele está prestes a deslanchar contra a já destruída universidade pública e seus já arruinados professores.
Política séria é tragédia e transformação. É trágico não poder concentrar no atendimento dos mais sofridos os recursos limitados do Estado. Só por meio dessa tragédia, porém, é que se transforma sociedade de dependentes em república de cidadãos.
Não culpemos pelo desvio da focalização os tecnocratas que fazem no governo o que sempre apregoaram. Responsável é quem os chamou: o homem que -sem clareza, sem coragem e sem fidelidade a compromissos históricos e eleitorais- ocupa a Presidência da República.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: A sacralidade do réu
Próximo Texto: Frases

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.