São Paulo, terça-feira, 16 de dezembro de 2003 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES Entre ciências e humanidades
EDUARDO PORTELLA
Os sistemas nervosos descendentes do autoritarismo prolongado e do populismo propalado estão ainda entubados ou movidos por aparelhos de respiração artificial. E continuarão desorientados, enquanto não dispusermos de um complexo normativo-judiciário capaz de dar cobertura deliberativa à sociedade civil ou, se preferirem, à cidadania. Para sairmos desse impasse é fundamental que a ciência deixe o homem continuar sendo ser humano, e que o homem permita à ciência prosperar. Certa vez o filósofo Jean-Paul Sartre afirmou taxativamente: "O homem é uma paixão inútil". Hoje nos vemos na contingência de repetir alguma coisa de mais categórico. Algo assim: o homem é uma utilidade sem paixão. Todos nós sabemos que o homem é um animal ético, rodeado de ameaças por todos os lados: destituição dos valores constitutivos, abalo das sinalizações modernas, destruição progressiva do ecossistema, inabilitação do repertório de referências morais. As turbulências socioculturais repercutem na consciência moral. E a esse cenário se junta o caso agudo de anorexia intelectual. O progresso da ciência corresponde a uma aspiração do homem, que só tem feito crescer com o caminhar da história. Mesmo quando as interrogações se multiplicam. A cada novo passo, a mesma pergunta: O que restará do homem se acelerarmos indiscriminadamente os mecanismos de controle tecnológico? Sabemos que a recusa passadista da técnica, em nome do humanismo cada vez mais sedentário, é inaceitável. Como inaceitável é a sua deriva filantrópica, imobilizada no lema decorrente: boas intenções, pouca ações. A razão moderna logo passou a confundir-se com a razão instrumental. Mas a blindagem do homem hoje não assegura a tranquilidade desejada. Mais sensato parece ser abrir despreconceituosamente os usos possíveis da razão. Permeabilizando-se até do registro simbólico-religioso. Não se trata de perseguir a cura moral definitiva, porém de procurar a terapia ética mais saudável, a elevação das taxas de imunologias prospectivas. Por isso não devemos subestimar o potencial de risco da ciência e igualmente da ética. Sobretudo quando a primeira se mostra prepotente, e a segunda unanimista. Não queremos reproduzir o pessimismo frankfurtiano diante do que chamaram de "eclipse da razão", mas simplesmente indagar: Até que ponto as descobertas da genética molecular, das biotecnologias, da informática não reduzem ou retiram a responsabilidade do projeto humano? Não são poucos os que chegam a conclusões sem sombras de dúvida, afirmando que é justamente a partir desse momento que o homem pode dispor do seu destino. O homem seria o senhor e dono de sua hereditariedade. O suporte concreto dessa herança já é o DNA. Mas agora ele poderia ser previamente pilotado. O eugenismo neoliberal conduz esse programa sem vacilações, deixando de lado desregulações decorrentes no plano humano e natural. Não sei se a ciência, na sua voracidade congênita, é capaz de escutar a voz do seu "outro". Em qualquer hipótese ela necessita da crítica da cultura para alargar o seu horizonte de legitimidade. É ele quem denuncia a coisificação simbólica do mundo da vida, levada a efeito pelas decisões friamente sistêmicas. Parece que optamos pela saída mais cômoda, mesmo que seja à custa da "exterminação do futuro". Paradoxalmente sob o pretexto de antecipar e proteger o nosso amanhã. Muitos contestam se estamos autorizados a depositar toda a nossa confiança nas mãos do futuro. Até porque a idéia de progresso de há muito se apropriou da idéia de futuro e impôs a sua rígida agenda. E nessa mesma linha, não raro de ascensão míope, a noção de desenvolvimento abandonou a concepção de aperfeiçoamento e felicidade, para desdobrar a de acumulação e rentabilidade, sem maiores preocupações com o homem, a terra, o ar, a água e assim por diante. A ciência não está isenta de responsabilidade nessa dilapidação complacente. Mas pode a ética ser a saída, se não foi ela a via de entrada? Provavelmente sim -a ética posterior à derroca da consciência solitária e isolacionista. Jamais a ética dada de antemão, contemplativa embora prescritiva, porém a ética partilhada, dialógica, refortalecida no ritmo da ação. Essa ética é particularmente produtiva nos períodos de reconstrução. Não seria exatamente a "ética minimalista", animada pelas "morais de provisão". Antes de tudo terá de ser, pactuada com a ciência, o motor da reconstrução, o lugar do reencontro ou da reconciliação entre as ciências e as humanidades. Essas ciências que estão sendo feitas agora, nas nossas universidades empobrecidas, têm um papel relevante na reconstrução e na construção da história que apenas começa. Eduardo Portella, 71, escritor, é professor emérito da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras. Foi ministro da Educação, Cultura e Esportes (governo João Figueiredo) e presidente da Conferência Geral da Unesco (1995-1997). Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Luiz Gonzaga Bertelli: Educar com os olhos no futuro Índice |
|