São Paulo, sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A TV digital e o sushi

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

O Brasil deverá, dentro de poucas semanas, escolher uma entre as três tecnologias básicas disponíveis para instalação de um sistema de TV digital. À primeira vista, o problema aparenta ser puramente técnico e, portanto, de fácil resolução. Não apenas porque a comparação entre peculiaridades puramente tecnológicas -e, conseqüentemente, caracterizáveis por parâmetros mensuráveis- é relativamente simples quando há imparcialidade mas também porque, neste caso, as conseqüências são de alcance meramente financeiro e, com freqüência, de pouca relevância.


A TV digital encerra um potencial de revolução de natureza social e política que transcende, e muito, questões apenas técnicas


Entretanto, a TV digital encerra um potencial de revolução de natureza social e política que transcende, e muito, a esfera meramente técnica, pois traz em seu bojo uma promessa de imenso acréscimo da capacidade de interatividade e acesso à informação. Acredita-se mesmo que não apenas ampliará as funções hoje atribuídas à internet como poderá vir a substituí-las em parte, além de proporcionar um amplo leque de novas oportunidades de negócios.
É importante notar que, como sói acontecer com mudanças tecnológicas profundas, as inovações refletem os anseios das sociedades em que se originam. Assim, no Japão, onde as emissoras de televisão são em sua maioria estatais, a tecnologia adotada é tal que entrega o controle tecnológico e organizacional às próprias emissoras, ou seja, ao governo. A telefonia móvel fica, assim, também submetida ao governo.
O sistema funciona bem naquele país, talvez por causa dos acentuados traços de feudalismo ainda remanescentes. E é certamente pelo mesmo motivo que nenhum outro país adotou a tecnologia japonesa. Nem mesmo aqueles vizinhos que convivem comercialmente com o Japão, tais como Hong Kong, Cingapura, Austrália, Índia etc., que preferiram o sistema desenvolvido na Europa.
Ao contrário do sistema japonês, o europeu, muito mais versátil, permite mais facilmente reorganizações sucessivas e introdução de novos modelos de negócios, além de interatividade ampliada devido à telefonia móvel.
O sistema americano, também baseado em idéias relativas à "televisão aberta", ainda está em evolução.
Quanto à tecnologia desenvolvida por ingentes esforços em várias instituições de pesquisas no Brasil, há suspeitas de que venha vestida de quimono.
Plim-Plim...
É também significativa a condição em que foi desenvolvido o sistema europeu, que, contrariamente ao japonês, em que uma única companhia detém a tecnologia, foi constituído por um consórcio de indústrias e redes de TV, além de instituições de pesquisas procedentes de vários países, o que permite maior flexibilidade no acesso a inovações e, inclusive, a participação de países usuários que venham a adotar essa tecnologia posteriormente -como seria, eventualmente, o caso do Brasil, a compartilhar de pesquisas e desenvolvimento.
Com o Japão, isso seria muito difícil devido a sua tradicional atitude defensiva em tudo que diz respeito à propriedade intelectual.
É, portanto, surpreendente que o ministro das Comunicações, o radialista Hélio Costa, venha reiteradamente afirmar que consultaria principalmente as principais redes de televisão, já que, explica ele, elas são as entidades diretamente interessadas.
Parece que o ministro não entendeu a transcendência dessa escolha, seu alcance social e político, e coloca a raposa no galinheiro. Parece-nos também que o ministro não entende o conceito elementar de Estado e suas próprias responsabilidades, ao apontar como principais interessadas as redes de TV. Os principais interessados, sr. ministro, são os cidadãos, os contribuintes, os usuários finais, e é a eles, em primeiro lugar, que o governo deve satisfações.
Plim-Plim...
Aliás, é incompreensível que essa decisão fique apenas no interior do Ministério de Comunicações, ou, pior ainda, no âmbito do gabinete do ministro. Não há país no mundo em que essa decisão ficasse exclusivamente em um círculo tão restrito. E onde ficam os ministérios de Indústria e Comércio, Exterior e Ciência e Tecnologia? Não apitam nada? E a Casa Civil?
E por que foi criado esse fogoso Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social? Seria um mero enfeite? E o Congresso Nacional, porque não chama a si a responsabilidade de uma ampla discussão? Ou será que o poder das redes de televisão cresce tanto com a proximidade das eleições que ninguém ousa contrariá-las?
Plim-Plim...

Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 74, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.


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