São Paulo, sexta-feira, 16 de dezembro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O falso dilema do impeachment

AUGUSTO DE FRANCO

O fato é que a oposição ficou com medo: medo de criar um mártir, medo de uma reação das massas ao estilo venezuelano, medo (inútil, como agora se vê) de ser acusada de golpista e, por último, medo do uso político que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva faria de sua vitimização. Assim, argumentando que não havia condições políticas para o impeachment, deixou de confrontar Lula por meio de tantos outros expedientes legais e legítimos disponíveis na nossa prateleira de salvaguardas democráticas e republicanas.


A oposição, para evitar o confronto com Lula, fez uso político indevido da possível impossibilidade do impeachment


Na verdade, como qualquer pessoa inteligente pode perceber, a impossibilidade do impeachment (propalada, não por acaso, mais pela oposição do que pelo próprio governo) foi um álibi, um pretexto para não radicalizar o processo político, porque, por trás de todos os medos mencionados acima, mais ou menos assumidos ou declarados, havia -e há- um outro medo, revelador dos reais motivos da leniência tucano-pefelista: o medo de que uma mexida muito brusca nas regras do jogo acabasse saindo do controle e, assim, a insatisfação popular com o governo corrupto desse para transbordar na forma de uma recusa também aos que o confrontaram, considerados de roldão como "farinha do mesmo saco".
Resultado: chegamos até aqui sem que o maior esquema de aparelhamento do governo e de privatização partidária do Estado de que se tem notícia no Brasil fosse desmontado. E é esta a situação em que nos encontramos hoje: mesmo que apareça nos jardins do Alvorada uma frota inteira de Fiat Elba, nada poderá ser feito. Está decidido. A determinação de aplicar a lei já foi trocada pela aposta na loteria do calculismo eleitoreiro.
Não afirmo que o impeachment fosse uma solução possível. Talvez sim, talvez não. Digo que a oposição, para se esquivar do confronto com o presidente Lula, fez uso político indevido dessa possível impossibilidade.
O impeachment deixou de ser um dispositivo constitucional válido de nossa vida democrática. São os próprios líderes oposicionistas que agora o comparam a um golpe.
Diante da acusação, feita pelo presidente da República, de que a oposição brasileira é golpista, o líder do PFL declarou que "se houvesse golpismo por parte da oposição, ele [Lula] já teria sofrido processo de impeachment".
Na mesma tônica reagiram os líderes tucanos. O líder do PSDB no Senado Federal disparou: "Que golpismo é esse? Nem sequer impeachment do presidente a oposição pediu". E o líder tucano na Câmara dos Deputados arrematou: "Aqui, nunca fizemos nenhum movimento para tirar o presidente Lula do poder. E ele bem que merecia. Mas achamos melhor esperar pela eleição do ano que vem, quando vamos afastá-lo em definitivo e democraticamente".
Isso quer dizer que, ao optarem por manter Lula -apesar de todas as evidências dos crimes cometidos por seu governo corrupto-, o fizeram conscientemente. O que -é claro- explica muita coisa.
Vejam o absurdo dessa idéia. Por um lado, ela desqualifica o impeachment, caracterizando-o como saída não democrática (e coloca a nação em dívida com Fernando Collor de Mello). Por outro lado, ela contribui para desconstituir o Estado de Direito ao subordiná-lo à correlação de forças, critério válido na luta política, mas incapaz de concorrer para a vigência do império da lei.
Pois se Lula "merecia" o impeachment, foi porque violou a legalidade vigente e, assim, deve-se inferir que providências não foram tomadas por uma opção de não seguir a lei. "Achar melhor" não seguir a lei, quando se sabe que a lei foi infringida, não é um comportamento compatível com a missão pública de salvaguardar a legalidade.
No limite, adota-se um novo princípio que espanca o direito: o princípio de que as leis serão aplicadas dependendo da correlação de forças ou das conveniências políticas.
O impeachment instrumentalizado pela oposição estabeleceu uma enganosa disjuntiva. Se não há condições para aplicá-lo, então tudo o que resta é poupar Lula, sustentando o seu mandato até as eleições.
Falso dilema: se as condições políticas para o impeachment não estão reunidas, isso não significa que devamos "blindar" o presidente. Ele pode ser interpelado de várias outras formas. Existem, repito, numerosos mecanismos legais e parlamentares para obrigá-lo a dar explicações à nação.
O "tudo ou nada" é equivalente a nada. Contribui para dar mais tempo de recuperação ao governo corrupto. E não concorre para que Lula seja constrangido democraticamente a mudar de comportamento. Pelo contrário, assegura que ele -o inegável chefe, responsável pelo esquema- permaneça livre para prosseguir nos seus desatinos e, mal-agradecido, ainda calunie a oposição, chamando-a de golpista. E permite, ademais, como escreveu o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que continue em marcha "o maior processo de destruição de valores republicanos já havido em nossa história".
Ora, se é assim, então estamos diante de fato gravíssimo, cuja correção não pode esperar um tempo tão longo a ponto de permitir, como dizem os juristas, que o bom direito se esfume. E nunca deveria ser transformada em aposta numa vitória eleitoral para lá de incerta.

Augusto de Franco, 55, é analista político do site e-Agora (www.e-agora.org.br) e autor de, entre outros livros, "Capital Social". Foi membro do comitê executivo do Conselho da Comunidade Solidária no governo FHC (1995-2002).


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