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RUY CASTRO
A verdadeira escatologia
RIO DE JANEIRO - Há 20 anos,
em Paris, entrei na livraria Shakespeare & Co. à procura de um livro
recém-lançado: "Merde!", um dicionário bilíngue francês-inglês,
cujo subtítulo dizia "O francês que
nunca nos ensinaram na escola".
Não era um dicionário de palavrões,
mas de gírias.
Se havia em Paris uma livraria capaz de ter o livro só podia ser a Shakespeare & Co., cuja fundadora, a
americana Sylvia Beach, publicara
o "Ulysses", de James Joyce, em
1922, sustentara o irlandês pelos
anos que ele levara para escrever o
romance e ainda lhe lavava as cuecas. Ao sair, "Ulysses" teve sua circulação proibida nos EUA por conter meia dúzia de palavrões. A Shakespeare & Co. era avançada, pelo
menos no tempo de Sylvia Beach.
Nem tanto em 1989, no bicentenário da Revolução. Como havia
duas senhoras no recinto, eu quase
sussurrara o título do livro ao ouvido do vendedor, um senhor já entrado em anos. Mas bastou-lhe ouvir a palavra mágica -"Merde!"-
para começar a vociferar em "franglais", certamente usando expressões contidas no dicionário. Era óbvio que ele não sabia do livro e interpretou o pedido como um trote
de turista ou coisa assim. Pois também me fiz de ofendido e passei
anos sem voltar à livraria.
Outro dia, no Maranhão, o presidente Lula falou "merda" duas vezes em rede nacional. E, na minha
opinião, sem nenhum problema,
exceto por um certo arranhão na
compostura inerente ao cargo. Mas
quem ainda se surpreende com ele?
Mais grave e, de fato, imoral foi o
que antecedeu a palavra chula:
"Tem que conversar com quem tem
votos", disse Lula. "Não se trata de
ter amigos ou não ter amigos. Não
se trata de ter afinidade ideológica
ou não ter afinidade ideológica. Se
trata de pragmatismo, governança". Tsk, tsk, tsk.
A "realpolitik" é a verdadeira
escatologia.
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