São Paulo, terça-feira, 17 de fevereiro de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

O chamamento

O problema maior do país hoje não é mais o descaminho de um governo infiel aos compromissos em nome dos quais se elegeu, a começar pelo crescimento econômico socialmente includente e pelo desfazimento de vínculos corruptores entre o poder e o dinheiro. O problema principal do Brasil agora é a dificuldade de construir força capaz de representar a alternativa que a nação continua a buscar.
Três acontecimentos ocorridos nos últimos dias confirmam a urgência dessa construção. O primeiro acontecimento foi o sinal dado pelo governo de que pretende impor reforma trabalhista no figurino das chamadas reformas de segunda geração do Consenso de Washington. Aprofundará desigualdades dentro do assalariado. Rompe-se, com isso, o último elo entre o Partido dos Trabalhadores e a causa dos trabalhadores. O segundo acontecimento foi o reconhecimento pelo presidente de que desapareceu justificativa para a separação entre o PT e o PSDB. Só a disputa pela posse do poder os separa. Representam o mesmo projeto, sediado conceitual e politicamente em São Paulo, de que São Paulo, entretanto, tem sido a maior vítima. O terceiro acontecimento foi escândalo -o primeiro de série previsível e prevista. A série resultará de esforços para consolidar hegemonia política sem respeitar limites morais ou legais. Resultará também do abandono das iniciativas que cortariam o mal pela raiz: o financiamento público das campanhas eleitorais e a regra de que candidato tem de falar a eleitor diante de fundo branco, sem truque milionário de marqueteiro.
O destino do governo do PT está traçado. O efeito corrosivo do desemprego e do arrocho salarial será reforçado pelo efeito explosivo de escândalos repetidos. À medida que o governo afundar no descrédito, oscilará entre apelos custosos à confiança financeira e apelos baratos à confiança popular.
Tudo isso coloca o país diante de obstáculo que ele ainda não tem como transpor. A oposição de que o Brasil precisa não pode ser feita pelos partidos que antes ocupavam o poder central e promoviam o mesmo projeto que o governo do PT optou por radicalizar. E não pode surgir como sectarismo de esquerda, fácil de isolar e pobre em respostas aos problemas nacionais. Hoje, o único partido que, por insistência destemida de seu líder, se oferece para desempenhar o papel da oposição necessária é o PDT. Não basta.
Só há um caminho: reprimir nosso pendor para o curto-prazismo e trabalhar, sem medo e sem ilusões, para o futuro. Que um punhado de homens e mulheres passe a atuar fora dos partidos e dentro da classe média, das universidades e das organizações sindicais e populares, recrutando quadros, reunindo forças e demarcando outro rumo -produtivista, trabalhista, educador, democratizante e nacional- para o Brasil. Que esses brasileiros criem condições para que indivíduos capazes de encarnar a alternativa se façam conhecidos da nação. Que aguardem, pacientemente, a hora de ganhar os apoios partidários que a luta pelo poder exigirá, sem sacrificar coerência constante a conveniência efêmera. E que reconheçam não lhes caber determinar se a execução da tarefa com que se haverão comprometido levará dois anos ou 20. Começar tudo de novo? Sim, tudo de novo. Sorte dos que puserem mãos a essa obra terem razões e ocasiões para se engrandecerem.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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