São Paulo, quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Siga o dinheiro

O que a Anistia Internacional tem em comum com o Greenpeace? As duas organizações, como pressuposto da sua independência política, recusam dinheiro de governos. Isso as coloca entre as exceções na paisagem global do "terceiro setor", como as ONGs (organizações não-governamentais) se autodefinem. A maioria absoluta das ONGs é financiada por instituições públicas multilaterais e pelos governos nacionais.
O Banco Mundial descobriu, há 15 anos, as virtudes da estratégia de cooptação de ONGs. Nesse período, desembolsou quase US$ 4 bilhões em fundos que financiam atividades de organizações espalhadas por 60 países. Romano Prodi, ex-presidente da Comissão Européia, gabou-se em 2000 de direcionar mais de 1 bilhão por ano a projetos de ONGs. Um relatório da OCDE, de 2003, informa que os governos dos países industrializados devotam, todos os anos, cerca de US$ 1 bilhão às ONGs.
Esse é o pano de fundo do fenômeno da multiplicação incontrolável de ONGs. A ONU recenseou, há dez anos, quase 29 mil ONGs com ação internacional. Há incontáveis ONGs "nacionais". Nos Estados Unidos, seu número é estimado em 2 milhões. Na Rússia, de 1992 para cá, formaram-se mais de 65 mil. No Quênia, elas crescem a um ritmo de 240 por ano. Elas atuam numa infinidade de campos: pobreza, refugiados, Aids, meio ambiente, direitos humanos, educação, saúde, mídia, racismo etc. O Fórum Social Mundial reuniu cerca de 150 mil participantes em Porto Alegre. É muito? Não para um congresso internacional de ONGs financiado basicamente por verbas públicas.
O Banco Mundial mantém parceria oficial e permanente com 24 ONGs. Quatro delas (Oxfam, Amigos da Terra, Bankwatch Network e Social Watch) participam do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial, que denuncia a globalização. As redes de financiamento entrelaçam-se em teias complexas: a Oxfam, que forneceu antigos diretores para o governo britânico e também para o Ministério das Finanças de Uganda, é uma das "apoiadoras" da Abong (Associação Brasileira de ONGs), um "sindicato patronal" dessas organizações no Brasil. A Abong, que também ocupa lugar destacado na direção do Fórum Social Mundial, publica um "Manual de Fundos Públicos", cuja finalidade é ensinar suas filiadas a candidatarem-se à obtenção de recursos governamentais.
Nas palavras de Oded Grajew, ex-assessor especial de Lula e presidente do Instituto Ethos, uma ONG de empresários, "a idéia de terceiro setor faz parte de um processo de mudança da democracia representativa para a participativa". Essa síntese do argumento das instituições multilaterais e dos governos para financiar as ONGs oculta retoricamente o problema da confusão entre as esferas pública e privada.
As ONGs são grupos privados de interesses, mas o seu poder de pressão expressa-se como capacidade especial de desviar recursos públicos para uma agenda política que não foi definida pelos cidadãos e escapa ao controle dos mecanismos institucionais da democracia. No fundo, a elite organizada nas ONGs compete vantajosamente com os setores desorganizados da população pela captura de parte da riqueza social. Não se pode pedir às ONGs que coloquem o princípio da independência política acima do vil metal. Mas é razoável exigir dos governos que tratem as ONGs como o que elas dizem ser: organizações não-governamentais.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.
magnoli@ajato.com.br


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