São Paulo, segunda-feira, 17 de março de 2008

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FERNANDO DE BARROS E SILVA

Ponto morto

SÃO PAULO - Não é preciso muito para imaginar o dia em que a moça da rádio nos anunciará, do helicóptero, o colapso final: "A CET já não registra a extensão do congestionamento urbano. Podemos ver daqui que todos os carros em todas as ruas estão imobilizados. Ninguém anda, para frente ou para trás. A cidade, enfim, parou. As autoridades pedem calma, muita calma".
"A auto-estrada do Sul" é um conto extraordinário de Julio Cortázar. Está em "Todos os Fogos o Fogo", de 1966 (a Civilização Brasileira traduziu). Narra, com monotonia infernal, um congestionamento entre Fontainebleau e Paris. É a história que inspirou "Weekend à Francesa" (1967), de Godard.
O que no início parece um transtorno corriqueiro vai assumindo contornos absurdos. Os personagens passam horas, mais horas, dias inteiros entalados na estrada.
Quando, sem explicações, o nó desata, os motoristas aceleram "sem que já se soubesse para que tanta pressa, por que essa correria na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia nada sobre os outros, onde todos olhavam para a frente, exclusivamente para a frente".
Não serve de consolo, mas faz pensar. Seguimos às cegas em frente há quanto tempo? De Prestes Maia aos túneis e viadutos de Maluf, a cidade foi induzida a andar de carro. Nossa urbanização se fez contra o transporte público. O símbolo modernizador da era JK é o pesadelo de agora, mas o fetiche da lata sobre rodas jamais se abalou.
Será ocasional que os carrões dos endinheirados -essas peruas high-tech- se pareçam com tanques de guerra? As pessoas saem de casa dentro de bunkers, literalmente armadas. E, como um dos tipos do conto de Cortázar, vêem no engarrafamento uma "afronta pessoal".
Alguém acredita em soluções sem que haja antes um colapso? Ontem era a crise aérea, amanhã será outra qualquer. A classe média necessita reciclar suas aflições. E sempre haverá algo a lembrá-la -coisa mais chata- de que ainda vivemos no Brasil.


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