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FERNANDO DE BARROS E SILVA
Ponto morto
SÃO PAULO - Não é preciso muito
para imaginar o dia em que a moça
da rádio nos anunciará, do helicóptero, o colapso final: "A CET já não
registra a extensão do congestionamento urbano. Podemos ver daqui
que todos os carros em todas as
ruas estão imobilizados. Ninguém
anda, para frente ou para trás. A cidade, enfim, parou. As autoridades
pedem calma, muita calma".
"A auto-estrada do Sul" é um conto extraordinário de Julio Cortázar.
Está em "Todos os Fogos o Fogo",
de 1966 (a Civilização Brasileira
traduziu). Narra, com monotonia
infernal, um congestionamento entre Fontainebleau e Paris. É a história que inspirou "Weekend à Francesa" (1967), de Godard.
O que no início parece um transtorno corriqueiro vai assumindo
contornos absurdos. Os personagens passam horas, mais horas, dias
inteiros entalados na estrada.
Quando, sem explicações, o nó
desata, os motoristas aceleram
"sem que já se soubesse para que
tanta pressa, por que essa correria
na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia nada
sobre os outros, onde todos olhavam para a frente, exclusivamente
para a frente".
Não serve de consolo, mas faz
pensar. Seguimos às cegas em frente há quanto tempo? De Prestes
Maia aos túneis e viadutos de Maluf, a cidade foi induzida a andar de
carro. Nossa urbanização se fez
contra o transporte público. O símbolo modernizador da era JK é o
pesadelo de agora, mas o fetiche da
lata sobre rodas jamais se abalou.
Será ocasional que os carrões dos
endinheirados -essas peruas high-tech- se pareçam com tanques de
guerra? As pessoas saem de casa
dentro de bunkers, literalmente armadas. E, como um dos tipos do
conto de Cortázar, vêem no engarrafamento uma "afronta pessoal".
Alguém acredita em soluções
sem que haja antes um colapso?
Ontem era a crise aérea, amanhã será outra qualquer. A classe média
necessita reciclar suas aflições. E
sempre haverá algo a lembrá-la
-coisa mais chata- de que ainda
vivemos no Brasil.
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