São Paulo, terça-feira, 17 de maio de 2005

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

A divisória

Pode uma proposta de mudança do rumo do Brasil ser prudente e factível e, no entanto, contrastar com as idéias que estão no comando do país? Pode, sim, porque as duas forças políticas dominantes -a que governa agora e a que governava antes- de tal forma se identificaram com o mesmo ideário e com as mesmas práticas que tornaram fácil a tarefa de marcar a diferença indispensável.
Dediquei grande parte de minha vida a formular idéias que ajudem a reimaginar e a reconstruir as instituições das sociedades contemporâneas. Não confundo, porém, a ambição de pensador com a responsabilidade de cidadão. Sei que nenhuma inovação institucional será possível no Brasil se não cumprirmos tarefa mais urgente, capaz de reunir, para cumpri-la, brasileiros de todas as classes sociais e de muitas correntes de opinião.
O governo atual continua praticando uma política que foi eleito para substituir. É orientação que há 20 anos ainda gozava de prestígio em muitas nações, mas que agora, entre os países continentais em desenvolvimento, só o Brasil pratica. Abraça estratégia de crescimento econômico que prioriza a confiança financeira mesmo quando o resultado é estrangular nossa produção e condenar nosso país a ser a primeira vítima da próxima crise de liquidez na economia mundial. Adota visão do social como conjunto de políticas compensatórias dirigidas só a pobres e financiadas com as sobras de um crescimento que nunca chega ao grau necessário para financiá-las. Demonstra complacência com uma vida pública que gira em torno de trocas de influência e de favor entre os detentores do poder e os donos do dinheiro.
Diante da constatação de que esse projeto antinacional só nos trouxe mediocridade e injustiça, uns, da oposição de direita, respondem dizendo que tudo melhoraria se diminuíssemos os gastos do Estado. (Mas como, sem subordinar ainda mais as necessidades do brasileiro comum aos interesses dos credores da dívida pública?) Outros, do governo, alegam estar com as mãos atadas. (Mas não foram eles mesmos que ataram as mãos?)
A alternativa a tudo isso começa num ponto central. Crescimento econômico e justiça social no Brasil de hoje só se efetivarão quando tiverem a mesma base: democratização de acesso a oportunidades de trabalho e de ensino. É deixando de castigar quem emprega e incentivando a qualificação de quem trabalha; é persistindo no sacrifício fiscal, mas usando as receitas que ele gera para investir em infra-estrutura e em gente; é tornando o Brasil atraente ao investidor porque nele se produz muito e se consome muito, não porque nele mandam banqueiro e rentista, e é criando escola pública boa o bastante para que a classe média queira matricular os filhos nela que libertaremos a nação da camisa-de-força em que a colocaram. O social só prosperará quando estiver ancorado no produtivo: no modelo de desenvolvimento. E nada disso acontecerá sem limpar a política, mudando as regras e os costumes que hoje permitem a governantes aterrorizar endinheirados e a endinheirados comprar governantes.
No Brasil de hoje esse plano de soerguimento nacional é, ao mesmo tempo, modesto e revolucionário. Informam-me sabidos e desencantados que não adianta lutar por tal reorientação agora: as cartas estariam marcadas e o país, de olhos vendados. Melhor, porém, subestimar os obstáculos do que subestimar o Brasil.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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