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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
A divisória
Pode uma proposta de mudança
do rumo do Brasil ser prudente e
factível e, no entanto, contrastar com
as idéias que estão no comando do
país? Pode, sim, porque as duas forças
políticas dominantes -a que governa
agora e a que governava antes- de tal
forma se identificaram com o mesmo
ideário e com as mesmas práticas que
tornaram fácil a tarefa de marcar a diferença indispensável.
Dediquei grande parte de minha vida a formular idéias que ajudem a reimaginar e a reconstruir as instituições
das sociedades contemporâneas. Não
confundo, porém, a ambição de pensador com a responsabilidade de cidadão. Sei que nenhuma inovação institucional será possível no Brasil se não
cumprirmos tarefa mais urgente, capaz de reunir, para cumpri-la, brasileiros de todas as classes sociais e de
muitas correntes de opinião.
O governo atual continua praticando uma política que foi eleito para
substituir. É orientação que há 20 anos
ainda gozava de prestígio em muitas
nações, mas que agora, entre os países
continentais em desenvolvimento, só
o Brasil pratica. Abraça estratégia de
crescimento econômico que prioriza a
confiança financeira mesmo quando
o resultado é estrangular nossa produção e condenar nosso país a ser a primeira vítima da próxima crise de liquidez na economia mundial. Adota
visão do social como conjunto de políticas compensatórias dirigidas só a
pobres e financiadas com as sobras de
um crescimento que nunca chega ao
grau necessário para financiá-las. Demonstra complacência com uma vida
pública que gira em torno de trocas de
influência e de favor entre os detentores do poder e os donos do dinheiro.
Diante da constatação de que esse
projeto antinacional só nos trouxe
mediocridade e injustiça, uns, da oposição de direita, respondem dizendo
que tudo melhoraria se diminuíssemos os gastos do Estado. (Mas como,
sem subordinar ainda mais as necessidades do brasileiro comum aos interesses dos credores da dívida pública?)
Outros, do governo, alegam estar com
as mãos atadas. (Mas não foram eles
mesmos que ataram as mãos?)
A alternativa a tudo isso começa
num ponto central. Crescimento econômico e justiça social no Brasil de
hoje só se efetivarão quando tiverem a
mesma base: democratização de acesso a oportunidades de trabalho e de
ensino. É deixando de castigar quem
emprega e incentivando a qualificação
de quem trabalha; é persistindo no sacrifício fiscal, mas usando as receitas
que ele gera para investir em infra-estrutura e em gente; é tornando o Brasil
atraente ao investidor porque nele se
produz muito e se consome muito,
não porque nele mandam banqueiro e
rentista, e é criando escola pública boa
o bastante para que a classe média
queira matricular os filhos nela que libertaremos a nação da camisa-de-força em que a colocaram. O social só
prosperará quando estiver ancorado
no produtivo: no modelo de desenvolvimento. E nada disso acontecerá sem
limpar a política, mudando as regras e
os costumes que hoje permitem a governantes aterrorizar endinheirados e
a endinheirados comprar governantes.
No Brasil de hoje esse plano de soerguimento nacional é, ao mesmo tempo, modesto e revolucionário. Informam-me sabidos e desencantados
que não adianta lutar por tal reorientação agora: as cartas estariam marcadas e o país, de olhos vendados. Melhor, porém, subestimar os obstáculos
do que subestimar o Brasil.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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