São Paulo, terça-feira, 17 de maio de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

A amante das letras

RIO DE JANEIRO - Merecidíssimo o Prêmio Camões dado, neste ano, a Lygia Fagundes Telles. E olha que tenho convivido com gente que transita, e bem, nos diversos gêneros da literatura, desde a clara e saborosa literatura infantil ao ensaio mais denso, impenetrável.
O caso de Lygia é especialíssimo em vários sentidos. Sua obra é credencial para fazer dela a rainha-mãe de todos os que aqui escrevem. Mas não é por aí que eu admiro e a tenho na conta de uma quase amante virtual, pois muito nos queremos. O diferencial que marca a vida e a obra de Lygia é o fato de, menina ainda, ter sido condenada a ouvir e a contar histórias. O prazer que sente e transmite quando ouve ou conta uma história seria assombroso se antes não fosse comovente.
Impressionante o número de escritores, e bons escritores ainda por cima, que se mostram entediados ou mesmo irritados quando começam a ouvir uma história, seja lá qual for. E, quando escrevem suas próprias histórias, colocam-se num patamar olímpico tão inacessível que dão a impressão de estarem fazendo um favor à humanidade.
Lygia é rainha e serva não apenas na arte de contar mas na de se alumbrar com ela. Em criança, gelada de medo, ouvia sua babá contar aquela história do fantasma que ia caindo do teto, aos pedaços, "eu caio, eu caio". Moça, estudante de direito e de educação física, uma das mais bonitas de sua geração, ela carregou como maldição infantil o gosto pela história que o tempo não apaga, antes aprimora.
Mas, quando chegou à literatura, foi para valer: nada a comove tanto como um bom soneto. Numa dessas viagens que por aí fazemos, não sei por que citei um verso de Bilac. Lygia me olhou séria, abriu a bolsa e dela tirou, amarfanhado, lido e relido milhares de vezes, o soneto de Bilac que trazia o verso lembrado. Coisa de amante mesmo.


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