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CARLOS HEITOR CONY
A amante das letras
RIO DE JANEIRO - Merecidíssimo o Prêmio Camões dado, neste ano, a
Lygia Fagundes Telles. E olha que tenho convivido com gente que transita, e bem, nos diversos gêneros da literatura, desde a clara e saborosa literatura infantil ao ensaio mais denso, impenetrável.
O caso de Lygia é especialíssimo em
vários sentidos. Sua obra é credencial
para fazer dela a rainha-mãe de todos os que aqui escrevem. Mas não é
por aí que eu admiro e a tenho na
conta de uma quase amante virtual,
pois muito nos queremos. O diferencial que marca a vida e a obra de
Lygia é o fato de, menina ainda, ter
sido condenada a ouvir e a contar
histórias. O prazer que sente e transmite quando ouve ou conta uma história seria assombroso se antes não
fosse comovente.
Impressionante o número de escritores, e bons escritores ainda por cima, que se mostram entediados ou
mesmo irritados quando começam a
ouvir uma história, seja lá qual for. E,
quando escrevem suas próprias histórias, colocam-se num patamar olímpico tão inacessível que dão a impressão de estarem fazendo um favor à
humanidade.
Lygia é rainha e serva não apenas
na arte de contar mas na de se alumbrar com ela. Em criança, gelada de
medo, ouvia sua babá contar aquela
história do fantasma que ia caindo
do teto, aos pedaços, "eu caio, eu
caio". Moça, estudante de direito e de
educação física, uma das mais bonitas de sua geração, ela carregou como
maldição infantil o gosto pela história que o tempo não apaga, antes
aprimora.
Mas, quando chegou à literatura,
foi para valer: nada a comove tanto
como um bom soneto. Numa dessas
viagens que por aí fazemos, não sei
por que citei um verso de Bilac. Lygia
me olhou séria, abriu a bolsa e dela
tirou, amarfanhado, lido e relido milhares de vezes, o soneto de Bilac que
trazia o verso lembrado. Coisa de
amante mesmo.
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