São Paulo, Quinta-feira, 17 de Junho de 1999
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Debates

OTAVIO FRIAS FILHO

Foi a partir da abertura política dos anos 70 que se fixou a moda dos debates. Descobriu-se que qualquer tema, do prosaico ao estratosférico, poderia ser objeto de um "debate". Interessava à oposição de esquerda, então dominante nos meios culturais, expressar-se sob o manto da pluralidade de enfoques.
O debate era produto também da revolução informal e espontaneísta de 68. Ele substituiu toda uma procissão de rituais públicos e codificados que eram de praxe até mais ou menos 1964: banquetes, discursos, desagravos e sobretudo conferências, muitas, sobre a cura do câncer, discos voadores ou o tabu da virgindade.
O regime militar (64-85) propiciou o massacre não só das instituições políticas, mas de toda uma flora de usos e costumes associados à respeitabilidade hierárquica, burguesa e católica. E, depois de 68, no mundo inteiro cada opinião passou a valer mais por sua experiência intrínseca do que por critérios de autoridade.
Daí que o debate tenha substituído a conferência, na vida pública, da mesma forma e pelas mesmas razões que no ambiente acadêmico a aula progressivamente cedeu lugar ao seminário, atendendo-se ainda, em grande parte dos casos, além das demandas já mencionadas, à mais universal das leis, que é a do menor esforço.
Esforço não apenas de quem elabora um discurso qualquer, mas de quem se dispõe a ouvi-lo: já se disse que a nossa época sofre de um déficit crônico de atenção. Claro que há seminários e debates excelentes, ainda que raros; óbvio que o debate é imprescindível entre especialistas, que mantêm seus códigos em comum.
O que evidentemente se perdeu, por causa da fragmentação incessante, foi a possibilidade de uma linguagem compartilhada entre leigos. O debate é muitas vezes uma pantomima de autismos por parte dos debatedores entre si, do moderador (que raramente atenta ao que eles dizem) e de um público impaciente ou absorto.
Quanto maior o isolamento de cada um, tanto mais forte o desejo de se "comunicar". Muitas pessoas vão a debates com o exclusivo propósito de exprimir, na cacofonia de tanta pluralidade, sua voz "autêntica" e nem sempre disparatada, apenas incomensurável com as demais. A mecânica da "mesa" se prolonga, assim, na platéia.
Nossa atenção é solicitada de modo descontínuo e intermitente; ganhamos em versatilidade mental, mas perdemos a capacidade de concentração dos nossos antepassados, manifesta na sua incrível aptidão para ouvir, ler e até para decorar. Não é mais costume estudar livros ou clássicos, mas "textos", eufemismo para trechos.
Não é possível fazer a roda do tempo retroceder, nem seria animador voltar à época das palestras empertigadas. Mas poderíamos fomentar um mínimo de unidade de linguagem em meio às nossas referências tão aleatórias e pedir um pouco mais de sincero gosto pelo diálogo por parte da "mesa" e da audiência.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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