São Paulo, sábado, 17 de julho de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Areia de Pajuçara

RIO DE JANEIRO - Ida a Maceió para fazer palestra no Instituto Zumbi dos Palmares. Na manhã de sábado, decido ir à praia, aquela mesma Pajuçara que me deslumbrou, mil anos passados, quando estava escrevendo meu primeiro romance. Um romance ambientado no Rio, temas e personagens cem por cento cariocas. Acontece que interrompi o romance e fui dar com os costados em Maceió, a serviço, e caí duro diante daquele mar verde e imenso, inédito para meus olhos fatigados de tanta Guanabara azul.
Dois meses depois, quando voltei ao romance interrompido, fechava os olhos e só via aquele verde luminoso, extravagante, fatal. Para introduzir tanto e medonho mar no meu personagem, personagem urbano, deslocado de seu cenário material e espiritual, inventei uma jovem quase adolescente, chamada Yara, jeito de bugre, que quebrava tatuís com os dentes e os comia com gula selvagem. Quando a tarde caía, ela surgia do vento e ficava a olhar o mar, as jangadas. E eu ficava a olhar para ela.
O intermezzo em Pajuçara durou pouco no romance e na minha vida. Mas, na manhã de sábado, aproximo-me de uma barraca que vendia coco e Yara me aparece, tal como me aparecia quando a tarde caía, anos e anos atrás. Não lhe vi o rosto, ela não partiu tatuís com os dentes fortes. Limitou-se a pedir um coco e a beber a água pelo canudinho.
O mesmo cabelo de bugre caindo sobre as costas nuas, os mesmos braços jovens, a mesma tanga branca que parecia um farrapo, resto da vela de alguma jangada desativada ou em decomposição, ali em frente, na mesma praia em que ela fazia montinhos de areia molhada e depois chutava com os pés.
No romance, eu lhe perguntava por que chutava os castelos de areia que fazia com tanto cuidado. E ela sempre me respondia: "Era um castelo? Eu não sabia".
Chupando seu canudinho, ela se afastou. E eu chutei para sempre da memória o meu castelo de areia molhada, areia de Pajuçara.


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