|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Areia de Pajuçara
RIO DE JANEIRO - Ida a Maceió para fazer palestra no Instituto Zumbi dos
Palmares. Na manhã de sábado, decido ir à praia, aquela mesma Pajuçara que me deslumbrou, mil anos
passados, quando estava escrevendo
meu primeiro romance. Um romance
ambientado no Rio, temas e personagens cem por cento cariocas. Acontece que interrompi o romance e fui dar
com os costados em Maceió, a serviço, e caí duro diante daquele mar
verde e imenso, inédito para meus
olhos fatigados de tanta Guanabara
azul.
Dois meses depois, quando voltei ao
romance interrompido, fechava os
olhos e só via aquele verde luminoso,
extravagante, fatal. Para introduzir
tanto e medonho mar no meu personagem, personagem urbano, deslocado de seu cenário material e espiritual, inventei uma jovem quase adolescente, chamada Yara, jeito de bugre, que quebrava tatuís com os dentes e os comia com gula selvagem.
Quando a tarde caía, ela surgia do
vento e ficava a olhar o mar, as jangadas. E eu ficava a olhar para ela.
O intermezzo em Pajuçara durou
pouco no romance e na minha vida.
Mas, na manhã de sábado, aproximo-me de uma barraca que vendia
coco e Yara me aparece, tal como me
aparecia quando a tarde caía, anos e
anos atrás. Não lhe vi o rosto, ela não
partiu tatuís com os dentes fortes. Limitou-se a pedir um coco e a beber a
água pelo canudinho.
O mesmo cabelo de bugre caindo
sobre as costas nuas, os mesmos braços jovens, a mesma tanga branca
que parecia um farrapo, resto da vela
de alguma jangada desativada ou
em decomposição, ali em frente, na
mesma praia em que ela fazia montinhos de areia molhada e depois chutava com os pés.
No romance, eu lhe perguntava por
que chutava os castelos de areia que
fazia com tanto cuidado. E ela sempre me respondia: "Era um castelo?
Eu não sabia".
Chupando seu canudinho, ela se
afastou. E eu chutei para sempre da
memória o meu castelo de areia molhada, areia de Pajuçara.
Texto Anterior: Brasília - Fernando Rodrigues: Atraso sem fim Próximo Texto: Luciano Mendes de Almeida: Discernir valores Índice
|