São Paulo, sábado, 17 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A reforma do Judiciário deve instituir a súmula vinculante?

SIM

Súmula vinculante: por que não?

RENATO NALINI

O constituinte de 1988 foi o que mais acreditou na solução judicial dos conflitos. Na Constituição cidadã, outorgou relevante função à Justiça, e resultado disso foi a invulgar proliferação de processos que inundaram todos os tribunais.
A Justiça brasileira padece de um paradoxo: por ser considerada pelos litigantes via essencial e insubstituível de resolução de controvérsias, recorre-se a ela com intensidade cada vez maior. Justamente por isso ela se converte em serviço público disfuncional, lento e desacreditado.
A única mácula -por todos reconhecida- do equipamento estatal encarregado de administrar o justo é a lentidão. A sociedade caminha num ritmo próprio, sob o signo da velocidade. Para a Justiça o ritmo é outro. A prestação jurisdicional se submete a outro padrão temporal. Não fora o processo uma ciência reconstrutiva do passado, única dimensão familiar ao Judiciário.
Na busca de remédios para o descompasso entre os reclamos da sociedade, ávida por uma prestação mais oportuna, e a capacidade de resposta do Judiciário, acena-se com a receita da súmula vinculante.
As súmulas já existem no direito brasileiro e sinalizam a orientação predominante dos tribunais. Depois de continuadas decisões no mesmo sentido, o colegiado sumula ou sintetiza o seu pensamento a respeito de determinada questão submetida a seu exame.
A novidade da reforma do Judiciário é fazer com que a súmula, hoje meramente orientadora, venha a vincular a decisão dos demais juízes e tribunais. Sua conversão em instrumento vinculante para todos os juízes tornaria inviável a sua inobservância em todo o território brasileiro. A partir de sua edição pelo STF, por um quorum mínimo de oito de seus 11 ministros, ela se tornaria obrigatória para a administração pública e para os integrantes do Judiciário.
Importante observar que as atuais súmulas são observadas e quase sempre seguidas pela magistratura. O juiz brasileiro já considera as súmulas, embora não vinculantes, como seguro parâmetro de seus julgamentos. Grande número de decisões invoca precedentes jurisprudenciais como fator preponderante de convencimento do prolator.
Melhor seria que o remédio adotado fosse a súmula impeditiva de recursos. Ela teria o mesmo efeito da súmula vinculante, pois não se poderia recorrer de decisão coincidente com o teor da súmula. Com a vantagem de que tal opção preservaria a liberdade plena de apreciação de todo o julgador. Não haveria questionamento a respeito da submissão da independência do juiz à vontade da cúpula nem sacrifício do dogma de seu sadio e livre convencimento. Mas, à impossibilidade do ideal, fique-se com o possível. É a reação do constituinte derivado à aparente insolubilidade do problema das lides repetidas e que tomam ao juiz brasileiro tempo precioso por ele subtraído ao conhecimento de questões novas. Um trabalho repetitivo, artesanal, hoje de cópia digitalizada e contida nos acervos eletrônicos, sem nenhuma criatividade.
A rigor, a utilização da súmula liberaria a comunidade jurídica do enfrentamento de questões idênticas e já decididas. A súmula não é ferramenta de libertação do juiz. É tentativa de obviar a necessidade de repetição de processos idênticos e que já mereceram apreciação do Judiciário. Parece contra-senso reiterar pedido já formulado, percorrer todas as instâncias e suas vicissitudes, com a exata pré-ciência de qual será o resultado final.
As teses sumuladas serão apenas aquelas emblemáticas, originadas de questões quais as tributárias, fiscais ou previdenciárias e de potencialidade multiplicadora de lides. Questões insuscetíveis de interpretação objetiva e próxima ao consenso, quais as criminais e de família, nunca serão objeto de súmula. Há de confiar no discernimento da Suprema Corte, que se utilizará com parcimônia da atribuição sumular.
Não é todo e qualquer tema que merecerá sumulação. Antes disso, muitos juízes e tribunais já terão se debruçado e se manifestado sobre a questão posta em juízo.
Em síntese, houvesse a Justiça cuidado de simplificar o julgamento de questões superadas, de maneira a conferir ritmo de maior celeridade a tais processos, o constituinte não recorreria a instrumentos polêmicos, mas aparentemente eficazes, de obviar a multiplicação de ações repetidas.
Um aspecto de inegável benefício da súmula vinculante é que ela obrigará também a administração pública. Basta esse fator para legitimar a auspiciosa previsão de sensível redução dos processos que têm por móvel inicial a resistência do poder público em atender às decisões judiciais.


José Renato Nalini, 58, mestre e doutor em direito constitucional pela USP, juiz, é presidente do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo e membro da Comissão de Reforma do Judiciário da Secretaria Especial do Ministério da Justiça.


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