São Paulo, sábado, 17 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A reforma do Judiciário deve instituir a súmula vinculante?

NÃO

Retrocesso

LUIZ FLÁVIO BORGES D'URSO

A súmula vinculante, que entra na pauta da reforma do Judiciário como instrumento para dinamizar a prestação jurisdicional, constitui verdadeiramente um retrocesso. Conserva o ranço das Ordenações Manuelinas, a draconiana legislação portuguesa adotada por nossos antigos tribunais monarquistas que a República aboliu.
As súmulas entraram na história do Supremo Tribunal Federal por ação do ministro Victor Nunes Leal, em 1963, tendo ele mesmo afastado a idéia de tirá-las do caráter de predominante para convertê-las em vinculante. Amparada na hipótese de diminuir os trabalhos das altas cortes, a súmula produz vícios insanáveis, ao privar os magistrados de autonomia e crítica na interpretação da lei, prejudicando os cidadãos que terão seus direitos cerceados. Dessa forma, o Poder Judiciário descumpre o inciso LVI do art. 5º da Constituição, que assegura aos litigantes o contraditório e a ampla defesa em todo o processo judicial ou administrativo.
A súmula retira do juiz a sua capacidade de entendimento e a sua livre convicção, ou seja, a sua independência para julgar. Torna-se o juiz um mero cumpridor de normas baixadas pelo grau superior -com isso compromete-se, ao inibir a livre apreciação dos fatos e do direito, a criação e o desenvolvimento da jurisprudência.
Tornando-se mero burocrata, exercendo papel de subalterno que reproduz decisões de instâncias superiores, o juiz, contra sua vontade, acaba prestando um desserviço à causa dos direitos fundamentais e da cidadania.
Há, ainda, outro aspecto que deve ser ressaltado. A súmula cria uma decisão normativa que se caracteriza como "erga omnes" ante a obrigatoriedade de outros julgamentos, significando que uma decisão superior se transforma em força de norma constitucional somente modificável pelo Poder Legislativo por emenda constitucional. No fundo, como se pode concluir, o Poder Judiciário adquire a posição de Poder Legislativo, função que não foi legitimada pelo povo, única entidade que, nas democracias, tem o poder de transferir seu poder para seus representantes. E, ao usurpar funções que integram outro Poder, o Judiciário, por meio da súmula vinculante, não deixa de contribuir para a ruptura de regras constitucionais, logo ele que ele deveria ser o guardião do Estado democrático de Direito.
Ademais, o lesado, quando bate às portas da Justiça, quer ter seu direito apreciado, devidamente julgado. Espera que a Justiça esgote todas as suas possibilidades de avaliação e julgamento. Não quer se sentir refém de uma jurisprudência que não pode e não deve ter cunho de definitividade em relação a um cidadão que não foi parte em feitos anteriores. Se a Justiça evolui na esteira da dinâmica da própria humanidade, entra em um processo estático quando depara com a súmula vinculante, que nada mais é do que a formação de um "julgamento pétreo", imodificável, subtraindo, assim, o oxigênio do direito.
O argumento para aprovar a súmula vinculante é o de que seria o instrumento para equacionar o problema dos excessos do serviço judiciário. Ora, essa hipótese também acabará por eliminar a apreciação judicial de direitos apontados como violados, o que, convenhamos, não é uma solução para a crise e, sim, como lembra muito bem a professora Carmen Lúcia Antunes Rocha, da PUC de Minas Gerais, "um extermínio de direitos".
Nossa democracia ganha força quando se ampara nos pilares da cidadania. Entre esses pilares está o da liberdade de expressão, aí inserido o direito do juiz de manifestar a sua convicção sobre a aplicação do direito. Amordaçando esse direito, a súmula vinculante incorpora, mesmo não sendo intenção dos legisladores, em própria mordaça da democracia.
Os recursos e processos que entulham as salas das altas cortes, parcela dos quais tratando sobre matéria julgada, contribuem, sim, para atravancar as decisões e atrasar a aplicação da Justiça. Mas é um erro monumental procurar aliviar a carga de serviços das cortes superiores com instrumentos que eliminam o que o juiz tem de mais nobre e peculiar à sua função: o livre convencimento, a independência para julgar. Que se procurem outras soluções, entre elas o suprimento de recursos humanos e financeiros, a incorporação de tecnologias avançadas, a desburocratização do que retarda o andamento processual e o próprio cumprimento dos comandos constitucionais para amparo aos carentes. Cerca de 8.000 juízes para uma população de 175 milhões de brasileiros, pode-se aduzir, é muito pouco.
O Poder Judiciário carece de reforma, não há dúvida. Reformar, porém, significa avançar, evoluir, inovar, jamais retroceder. A súmula vinculante é um retrocesso.


Luiz Flávio Borges D'Urso, 44, advogado criminalista, mestre e doutor em direito pela USP, é o presidente da OAB-SP.


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