|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
A reforma do Judiciário deve instituir a súmula vinculante?
NÃO
Retrocesso
LUIZ FLÁVIO BORGES D'URSO
A súmula vinculante, que entra na
pauta da reforma do Judiciário como instrumento para dinamizar a prestação jurisdicional, constitui verdadeiramente um retrocesso. Conserva o
ranço das Ordenações Manuelinas, a
draconiana legislação portuguesa adotada por nossos antigos tribunais monarquistas que a República aboliu.
As súmulas entraram na história do
Supremo Tribunal Federal por ação do
ministro Victor Nunes Leal, em 1963,
tendo ele mesmo afastado a idéia de tirá-las do caráter de predominante para
convertê-las em vinculante. Amparada
na hipótese de diminuir os trabalhos
das altas cortes, a súmula produz vícios
insanáveis, ao privar os magistrados de
autonomia e crítica na interpretação da
lei, prejudicando os cidadãos que terão
seus direitos cerceados. Dessa forma, o
Poder Judiciário descumpre o inciso
LVI do art. 5º da Constituição, que assegura aos litigantes o contraditório e a
ampla defesa em todo o processo judicial ou administrativo.
A súmula retira do juiz a sua capacidade de entendimento e a sua livre convicção, ou seja, a sua independência para
julgar. Torna-se o juiz um mero cumpridor de normas baixadas pelo grau
superior -com isso compromete-se,
ao inibir a livre apreciação dos fatos e do
direito, a criação e o desenvolvimento
da jurisprudência.
Tornando-se mero burocrata, exercendo papel de subalterno que reproduz decisões de instâncias superiores, o juiz, contra sua vontade, acaba prestando um desserviço à causa dos direitos
fundamentais e da cidadania.
Há, ainda, outro aspecto que deve ser
ressaltado. A súmula cria uma decisão
normativa que se caracteriza como "erga omnes" ante a obrigatoriedade de
outros julgamentos, significando que
uma decisão superior se transforma em
força de norma constitucional somente
modificável pelo Poder Legislativo por
emenda constitucional. No fundo, como se pode concluir, o Poder Judiciário
adquire a posição de Poder Legislativo,
função que não foi legitimada pelo povo, única entidade que, nas democracias, tem o poder de transferir seu poder
para seus representantes. E, ao usurpar
funções que integram outro Poder, o Judiciário, por meio da súmula vinculante, não deixa de contribuir para a ruptura de regras constitucionais, logo ele que
ele deveria ser o guardião do Estado democrático de Direito.
Ademais, o lesado, quando bate às
portas da Justiça, quer ter seu direito
apreciado, devidamente julgado. Espera que a Justiça esgote todas as suas possibilidades de avaliação e julgamento.
Não quer se sentir refém de uma jurisprudência que não pode e não deve ter
cunho de definitividade em relação a
um cidadão que não foi parte em feitos
anteriores. Se a Justiça evolui na esteira
da dinâmica da própria humanidade,
entra em um processo estático quando
depara com a súmula vinculante, que
nada mais é do que a formação de um
"julgamento pétreo", imodificável, subtraindo, assim, o oxigênio do direito.
O argumento para aprovar a súmula
vinculante é o de que seria o instrumento para equacionar o problema dos excessos do serviço judiciário. Ora, essa
hipótese também acabará por eliminar
a apreciação judicial de direitos apontados como violados, o que, convenhamos, não é uma solução para a crise e,
sim, como lembra muito bem a professora Carmen Lúcia Antunes Rocha, da
PUC de Minas Gerais, "um extermínio
de direitos".
Nossa democracia ganha força quando se ampara nos pilares da cidadania.
Entre esses pilares está o da liberdade de
expressão, aí inserido o direito do juiz
de manifestar a sua convicção sobre a
aplicação do direito. Amordaçando esse
direito, a súmula vinculante incorpora,
mesmo não sendo intenção dos legisladores, em própria mordaça da democracia.
Os recursos e processos que entulham
as salas das altas cortes, parcela dos
quais tratando sobre matéria julgada,
contribuem, sim, para atravancar as decisões e atrasar a aplicação da Justiça.
Mas é um erro monumental procurar
aliviar a carga de serviços das cortes superiores com instrumentos que eliminam o que o juiz tem de mais nobre e
peculiar à sua função: o livre convencimento, a independência para julgar.
Que se procurem outras soluções, entre
elas o suprimento de recursos humanos
e financeiros, a incorporação de tecnologias avançadas, a desburocratização
do que retarda o andamento processual
e o próprio cumprimento dos comandos constitucionais para amparo aos carentes. Cerca de 8.000 juízes para uma
população de 175 milhões de brasileiros,
pode-se aduzir, é muito pouco.
O Poder Judiciário carece de reforma,
não há dúvida. Reformar, porém, significa avançar, evoluir, inovar, jamais retroceder. A súmula vinculante é um retrocesso.
Luiz Flávio Borges D'Urso, 44, advogado criminalista, mestre e doutor em direito pela USP, é o
presidente da OAB-SP.
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Renato Nalini: Súmula vinculante: por que não? Próximo Texto: Painel do leitor Índice
|