São Paulo, terça-feira, 17 de agosto de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Bonapartismo negocista

A proposta de instituir conselho para "orientar" os jornalistas faz parte de longa lista de iniciativas convergentes: o esforço para cercear o Ministério Público; a intimidação do Judiciário sob o disfarce de controle externo; a humilhação dos funcionários públicos; a desmoralização dos partidos políticos, sobretudo dos que integram a base do governo, inchados ou desfalcados de acordo com estratagemas urdidos no Palácio; a politização das agências reguladoras, tratadas como correias de transmissão de decisões palacianas; a intromissão do núcleo do governo em todos os grandes negócios de que ele tem notícia e portanto também a convocação dos grandes empresários para contribuir e calar.
O que é isso? Não é nem autoritarismo sério, a serviço de concepção meditada de transformação do aparelho de Estado, nem mera repetição de atitudes impensadas e ineptas. É bonapartismo negocista; a ênfase recai no adjetivo, não no substantivo. A esse bonapartismo de bazar parece faltar substância: seu conteúdo seria a falta de conteúdo. Compreendamo-lo, porém, a partir da identificação de seus agentes e de seus elementos constitutivos.
Os agentes são dois. O primeiro é o pequeno grupo que, ao lado do presidente, ocupa o centro do poder, com o afastamento crescente do próprio PT. O segundo é um bando de aparelhistas que, dentro e fora do PT e do movimento sindical, fizeram carreira, como emergentes, nos tratos entre os fundos de pensão, os bancos públicos, a arrecadação dos fundos de campanha e o mundo dos negócios. Para esse grupo, há relação digamos dialética entre medidas protetoras, como as que listei no início desse texto, e medidas facilitadoras, como a lei Delúbio -a lei das parcerias público-privadas.
Os componentes são três. O primeiro é o hegemonismo: o salvamento do Brasil dependeria da perpetuação dos atuais governantes. Hegemonismo carente de referência, dada a concentração de poder numa camarilha palaciana. O segundo é o dirigismo: caberia ao governo determinar as diretrizes de tudo o que de importante ocorra no país. Dirigismo vazio de orientação, já que a única estratégia econômica oficial é manter a confiança financeira e acumular superávits comerciais. Hegemonismo e dirigismo servem apenas para respaldar o terceiro elemento, este, sim, fundamental: o negocismo. E a condição essencial das práticas negocistas é o descumprimento da promessa de reformar as regras do financiamento eleitoral: a coleta de fundos para a política fornece as ocasiões para o negocismo.
O bonapartismo negocista exige três respostas. A primeira resposta é unir-nos na resistência contra as investidas anti-republicanas. Não são, por exemplo, apenas os jornalistas que devem defender a liberdade de imprensa. São todos os cidadãos. A segunda resposta é intensificar o contra-ataque. Seria erro fatal deixar a discussão no plano das lamentações republicanas. Procuradores, juízes, parlamentares, jornalistas e militantes da sociedade civil devem juntar-se para expor as práticas negocistas, trazendo à luz os fluxos de dinheiro que as evidenciem. O soco no estômago mudaria radicalmente o quadro. A terceira resposta é preparar projeto político para 2006 que demonstre e encarne o vínculo entre o compromisso de dar primazia aos interesses do trabalho e da produção e a causa republicana.
Minha participação nesse espaço ficará suspensa por duas semanas.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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