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JOSÉ SARNEY
Morte aos devotos do Pavão
EM 1991 , quando Mitterrand,
invocando o passado europeu, dizia que "a missão da
Santa Aliança se esgotou na retomada do Kuait", escrevi neste espaço: "O Iraque será nesse quadro
um novo Líbano? Esta realidade
será terrível, na repetição da violência mais cruel, como se vê no
massacre dos curdos, queimados
nos desertos de Kirkuk".
Quinze anos depois, não só o Iraque é muito maior do que o Líbano
como os curdos seguem seu milenar sofrimento. Anteontem sofreram mais uma ação de extermínio,
na fornalha de sangue em que se
tornou o Iraque. Com um agravante: desta vez o alvo foi uma minoria
da minoria curda, os yazidis. Esse
pobre povo, meio milhão de pessoas espalhadas pelo Oriente, remonta aos tempos primitivos,
guardando comportamentos que
há milênios desapareceram. Possuem uma religião sincretista, misto de zoroastrismo, judaísmo, cristianismo nestoriano e islamismo.
Embora a maioria fale curdo, ainda
preservam a sua língua, o kurmanjî, professam uma religião que não
conhece nem o bem nem o mal e
adoram o deus Melek Ta'us, que é
um anjo-rei, representado pelo pavão, a que os muçulmanos consideram o diabo. E, por causa desse diabo, eles foram vítimas, uma vez
mais, de brutal violência. Uma de
suas aldeias, Sinjar, foi atacada por
quatro caminhões bomba que mataram mais de 500 yazidis, que já
são poucos. É como se, no Brasil,
matassem 170 mil pessoas, num
atentado que dizem "parecer com
o de uma bomba nuclear".
Nós nos tornamos insensíveis,
diante de tanta violência, aos extermínios. Mata-se no Iraque, na
Palestina, no Sudão, na Caxemira e
pelo mundo afora.
Certa vez, numa noite em Portugal, o notável escritor luso da "Peregrinação Interior", Alçada Baptista, me dizia, entre um vinho do
Porto e um cálice de nostalgia: "Todo dia agradeço a Deus ter me feito
português, com todas as mazelas
que se dizem da terra. Calcule se
ele me tivesse feito mulher no Afeganistão, onde debaixo das burcas
eu não podia nem deixar ver essas
esquálidas mãos". Nós aqui também não deixamos de ter nossos
males, mas me recordo de Alçada e
sou feliz de ser brasileiro, mesmo
num tempo em que é moda e gosto
falar mal do país, insultá-lo e até dizer "cansei". Dizem alguns que é
uma visão que nos vem dos índios,
que, por exemplo, entregaram suas
mulheres aos espanhóis na descoberta da América pensando que
eram deuses. E Darcy Ribeiro, irreverente, criticava: "Deuses fedorentos chamados civilizados, deixando os índios limpinhos, tomando banho todo dia, cheirando a mato e capim santo".
Um réquiem pelos yazidis curdos. Como dói e não é só fotografia,
para lembrar Drummond.
jose-sarney@uol.com.br
JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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