São Paulo, sexta-feira, 17 de agosto de 2007

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JOSÉ SARNEY

Morte aos devotos do Pavão

EM 1991 , quando Mitterrand, invocando o passado europeu, dizia que "a missão da Santa Aliança se esgotou na retomada do Kuait", escrevi neste espaço: "O Iraque será nesse quadro um novo Líbano? Esta realidade será terrível, na repetição da violência mais cruel, como se vê no massacre dos curdos, queimados nos desertos de Kirkuk".
Quinze anos depois, não só o Iraque é muito maior do que o Líbano como os curdos seguem seu milenar sofrimento. Anteontem sofreram mais uma ação de extermínio, na fornalha de sangue em que se tornou o Iraque. Com um agravante: desta vez o alvo foi uma minoria da minoria curda, os yazidis. Esse pobre povo, meio milhão de pessoas espalhadas pelo Oriente, remonta aos tempos primitivos, guardando comportamentos que há milênios desapareceram. Possuem uma religião sincretista, misto de zoroastrismo, judaísmo, cristianismo nestoriano e islamismo.
Embora a maioria fale curdo, ainda preservam a sua língua, o kurmanjî, professam uma religião que não conhece nem o bem nem o mal e adoram o deus Melek Ta'us, que é um anjo-rei, representado pelo pavão, a que os muçulmanos consideram o diabo. E, por causa desse diabo, eles foram vítimas, uma vez mais, de brutal violência. Uma de suas aldeias, Sinjar, foi atacada por quatro caminhões bomba que mataram mais de 500 yazidis, que já são poucos. É como se, no Brasil, matassem 170 mil pessoas, num atentado que dizem "parecer com o de uma bomba nuclear".
Nós nos tornamos insensíveis, diante de tanta violência, aos extermínios. Mata-se no Iraque, na Palestina, no Sudão, na Caxemira e pelo mundo afora.
Certa vez, numa noite em Portugal, o notável escritor luso da "Peregrinação Interior", Alçada Baptista, me dizia, entre um vinho do Porto e um cálice de nostalgia: "Todo dia agradeço a Deus ter me feito português, com todas as mazelas que se dizem da terra. Calcule se ele me tivesse feito mulher no Afeganistão, onde debaixo das burcas eu não podia nem deixar ver essas esquálidas mãos". Nós aqui também não deixamos de ter nossos males, mas me recordo de Alçada e sou feliz de ser brasileiro, mesmo num tempo em que é moda e gosto falar mal do país, insultá-lo e até dizer "cansei". Dizem alguns que é uma visão que nos vem dos índios, que, por exemplo, entregaram suas mulheres aos espanhóis na descoberta da América pensando que eram deuses. E Darcy Ribeiro, irreverente, criticava: "Deuses fedorentos chamados civilizados, deixando os índios limpinhos, tomando banho todo dia, cheirando a mato e capim santo".
Um réquiem pelos yazidis curdos. Como dói e não é só fotografia, para lembrar Drummond.

jose-sarney@uol.com.br


JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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