São Paulo, terça-feira, 17 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Entre dois retrocessos

JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE

Em dois artigos nesta página (dias 7/8 e 19/8), defendi a hipótese de uma nova derrota eleitoral do PT e da resultante crise interna que o poderia levar a uma divisão, e adverti, além disso, sobre as consequências da ruptura do pacto de governabilidade de centro-direita sobre o futuro da estabilidade econômica e política do país. Creio que fui claro e geralmente compreendido, e não voltaria ao assunto, não fosse a petulância e a agressividade raivosa de um artigo aqui publicado, que tenta me desqualificar à guisa de argumento.
O autor, mestre em sociologia, parece não entender de porcentagem. Em vez de chamar os outros de desonesto, poderia aprender que o que importa no crescimento do eleitorado do Lula é se ele se dá a um taxa maior ou menor do que o aumento do eleitorado nacional. Também não entende que as amostras das pesquisas eleitorais são estatisticamente independentes entre si e, portanto, não há "evidência empírica" de transferência de votos entre uma pesquisa e a seguinte, apenas especulação.
Pouco importa. Dentre os dois ocasos, o que me preocupa é o do projeto reformista e modernizador representado por dez anos de liderança de Fernando Henrique. Eu não me importaria se me sentisse à vontade com o desenvolvimentismo estatista que caracterizou o período populista e a ditadura militar.
O primeiro, privilegiando a relação direta com as massas por cima das instituições, certamente industrializou o país a passos rápidos e promoveu um crescimento a taxas elevadas, mas o custo foi alto demais. Inflação descontrolada, alta concentração de renda, instabilidade política recorrente, um imenso entulho corporativo e um atraso competitivo do qual ainda não escapamos. Para desembocar no regime militar, do qual, diferentemente do Lula, muitos não têm saudades.
Quanto ao desenvolvimentismo da era Geisel, empreendido na contramão do processo de ajuste da economia mundial ao choque de petróleo, legou-nos o atraso tecnológico, a brutal concentração de renda e o perverso endividamento que nos custou a década perdida de 1980 -que, no Brasil, estendeu-se até 1994. Ao custo da nossa liberdade e dos direitos humanos, que até o Lula reconhece, eufemisticamente, que "não valeu a pena".


O eleitor já aprendeu, desde 1994, que sem moeda estável não há política de emprego ou de segurança que se sustente


Para todos aqueles que não acreditam que tudo é uma grande festa e que, com jeitinho, um presidente eleito num pleito altamente polarizado alcançará sem atropelos uma maioria governativa estável, com base em uma coalizão que não reúne, na melhor das hipóteses, nem um terço do Congresso, e num quadro de crescente mobilização da insatisfação popular, a alternativa entre Ciro e Lula é uma escolha de Sofia.
Para aqueles que, dada a desconfiança universal dos investidores nos candidatos de oposição, já manifestada seis meses antes do pleito, não esperam que -diante de um segundo turno entre Lula e Ciro- "Oropa, França e Bahia" se curvarão beatamente ante a prestidigitação de Duda Mendonça, há razões para temer pelo futuro do país.
Ninguém dormirá tranquilo enquanto o candidato do governo se mostrar incapaz de ocupar seu próprio espaço eleitoral, suficiente para levá-lo ao segundo turno. Afinal, são 25% que consideram o governo bom ou ótimo, 37% que aprovam o presidente Fernando Henrique, 34% com inclinação ou simpatia pela coalizão PSDB-PMDB.
Entretanto, enquanto a campanha de José Serra teimar em diferençá-lo de Fernando Henrique, e não de Lula, cria-se um problema para o eleitor, pois, se não bastasse o bom senso, as pesquisa qualitativas estão mostrando que, se é para ser diferente, Lula é o candidato certo. A alternativa ao governo é o Lula; mas a alternativa ao Lula, quem será?
A permanecer essa incógnita, a indecisão nas prévias entre Serra e Ciro terá desfecho imprevisível.
Além da ruptura da coalizão governamental que provocou a saída do PFL, o fator que mais contribui para a atual indefinição do eleitorado moderado e conservador é o acordo de cavalheiros entre os candidatos para escamotear o tema do risco de "débâcle" financeiro. E com toda a razão, porque nenhum deles tem crédito com o eleitorado, muito menos com o "eleitorado" anônimo dos mercados. Serra é a exceção, porque tem o crédito de ter dobrado as multinacionais da indústria farmacêutica e de ter feito o governo Bush recuar numa política que sucessivos governos americanos vêm tentando fazer adotar globalmente nos últimos 30 anos, desde a Rodada Tóquio da atual OMC.
Se for para fazer promessas, entre os 8 milhões de empregos do Lula e os 10 do Serra, os 40% de aumento salarial do Garotinho são muito mais atraentes. Só que o eleitor já aprendeu, desde 1994, que sem moeda estável não há política de emprego ou de segurança que se sustente. Será que os marqueteiros de Serra o vão aprender a tempo?


José Augusto Guilhon Albuquerque, 61, é professor titular de relações internacionais da FEA-USP. Foi detentor da cátedra Rio Branco, na Chatham House, Royal Institute of International Affairs (Reino Unido).



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