São Paulo, sexta-feira, 17 de setembro de 2004

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JOSÉ SARNEY

O Parlamento e as raposas

A sobriedade do parlamento inglês foi submetida a uma prova de bagunça. Nada mais nada menos que por causa das raposas. Os tradicionais guardas vestidos de preto e cabeleiras brancas metidos num qüiproquó entre os caçadores de raposa que não queriam deixar que o Parlamento proibisse a sua caça e uma multidão irada que fora gritava: "Queremos matar raposa!". Os parlamentares de dentro: "Raposa viva, sem cachorros as perseguindo!".
Ninguém pense que isso é uma questão tão simples. Os ingleses são agarrados à sua tradição, e dela não abdicam. E um dos mais antigos e mais populares esportes nobres do país é justamente a caça à raposa. Não é uma caça simples. Primeiro, a raposa não pode ser morta a tiros. É um cerimonial que é preparado com muito cuidado e elegância. Os caçadores reúnem-se, comemoram e orgulhosamente apresentam suas matilhas treinadas. Os "terriers" são os melhores. Mas há os raposeiros, cachorros fortes de patas pequenas. As raposas são acuadas, e os ingleses, montados a cavalo, com a matilha em desabalada e desordenada carreira, saem na caça brutal até os cães alcançarem as raposas e fazerem a festa.
Mas os ingleses não gostam apenas de caçar raposas. Eles, na Índia, faziam festas imensas nas caçadas de tigres, num ritual de perigo, matando-os com uma única bala. Essa caçada era tão heróica que passou um provérbio para a língua inglesa quando se desconfia de que alguém não seja gente séria. Então dizem: "Fulano não é confiável, não pode ser convidado para uma caçada de tigre."
As raposas também não são tão inocentes nem destituídas de artimanhas. Fingem-se de mortas e, quando vão ser agarradas, voltam-se ferozes e lá vai a mão de raposeiro. Se os homens as caçam, elas caçam as perdizes, os coelhos, as lebres e também gostam de frutas, de uvas, de figos, de mel. São cheias de malandragem e notívagas, descobrem meios e modos de entrar nos galinheiros e papar as galinhas mais gordas.
Na literatura, muitos escritores foram seduzidos por elas. O mais conhecido deles é La Fontaine, que muito as explorou. Em "A Raposa e as Uvas", ele começa: "Certa raposa matreira / que andava à toa e faminta / ao passar por uma quinta / viu no alto da parreira / um cacho de uvas maduras". Já em "O Leão Doente e a Raposa", esta escapa de ser comida porque, esperta, viu que os bichos entravam e não voltavam. Outra fábula do La Fontaine é "A Raposa e a Cegonha", em que a cegonha esperta levou a raposa a beber água numa cantarão onde não entrava seu focinho depois que a raposa serviu-lhe água num prato raso.
Esopo também foi tentado pela raposa e escreveu "A Raposa e o Corvo", a famosa vaidade do corvo que, ao cantar, deixou cair o queijo e a raposa encheu a barriga.
E qual a moral a tirar da invasão do Parlamento inglês pelos caçadores de raposa? Quem vai ao mato sem cachorro não mata raposa.
E o Batman que invadiu o Palácio de Buckingham que se cuide, pois pode ser comido pelos cachorros da rainha, e os guardas do Parlamento, pelas raposas do Partido Trabalhista.
Aureliano Chaves advertia aos políticos espertos: "O futuro de toda raposa é enfeitar o pescoço das mulheres."


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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