São Paulo, quarta-feira, 17 de setembro de 2008

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CLÓVIS ROSSI

Viagem aos meus fantasmas

SANTIAGO - Fazia tanto tempo que não vinha a Santiago que nem sabia que Salvador Allende Gossens voltara ao Palácio de la Moneda, a sede do governo. Não exatamente ao palácio, mas à plaza de la Constitución, bem em frente.
Como pode a ignomínia levar um presidente constitucional ao suicídio bem em frente à uma praça chamada Constituição?
Esse Allende de bronze não olha para La Moneda. Olha paralelamente a ele. Não vê, portanto, que o palácio está bonito, pintado e repintado, como se os governantes da democracia pós-1989 (todos eles adversários da ditadura Pinochet, responsável pela morte de Allende) quisessem raspar as marcas deixadas pelo bombardeio covarde da sede do governo para dela sacar o presidente, vivo ou morto. As marcas nas paredes saem, mas será que saem também da alma?
Lá dentro, o Pátio de los Naranjos tem de novo a fonte no meio, a água jorrando, os laranjais florindo. Quando o vi, há 35 anos, ainda exibia paredes chamuscadas pelo ataque da FACh (a Força Aérea Chilena) e enormes buracos de bala.
Achei até, num canto, junto com outros restos mortais do governo deposto, um livrão contendo a mensagem de Allende ao Congresso na abertura de uma sessão legislativa, de ano impossível de determinar, porque as folhas estavam também chamuscadas.
No tempo de Allende, a passagem da praça para o outro lado, a alameda Bernardo O'Higgins, que os chilenos tratam simplesmente como alameda, era risonha e franca. Hoje, só passam por ali as pessoas devidamente autorizadas. Mais que o bronze de Allende, ficou a palavra de esperança na mensagem final que emitiu pelo rádio, pouco antes de se matar, e adorna seu pedestal: "Mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre livre para construir una sociedad mejor".

crossi@uol.com.br


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