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CLÓVIS ROSSI
Viagem aos meus fantasmas
SANTIAGO - Fazia tanto tempo
que não vinha a Santiago que nem
sabia que Salvador Allende Gossens
voltara ao Palácio de la Moneda, a
sede do governo. Não exatamente
ao palácio, mas à plaza de la Constitución, bem em frente.
Como pode a ignomínia levar um
presidente constitucional ao suicídio bem em frente à uma praça chamada Constituição?
Esse Allende de bronze não olha
para La Moneda. Olha paralelamente a ele. Não vê, portanto, que o
palácio está bonito, pintado e repintado, como se os governantes da democracia pós-1989 (todos eles adversários da ditadura Pinochet, responsável pela morte de Allende)
quisessem raspar as marcas deixadas pelo bombardeio covarde da sede do governo para dela sacar o presidente, vivo ou morto. As marcas
nas paredes saem, mas será que
saem também da alma?
Lá dentro, o Pátio de los Naranjos
tem de novo a fonte no meio, a água
jorrando, os laranjais florindo.
Quando o vi, há 35 anos, ainda exibia paredes chamuscadas pelo ataque da FACh (a Força Aérea Chilena) e enormes buracos de bala.
Achei até, num canto, junto com
outros restos mortais do governo
deposto, um livrão contendo a
mensagem de Allende ao Congresso na abertura de uma sessão legislativa, de ano impossível de determinar, porque as folhas estavam
também chamuscadas.
No tempo de Allende, a passagem
da praça para o outro lado, a alameda Bernardo O'Higgins, que os chilenos tratam simplesmente como
alameda, era risonha e franca. Hoje,
só passam por ali as pessoas devidamente autorizadas.
Mais que o bronze de Allende, ficou a palavra de esperança na mensagem final que emitiu pelo rádio,
pouco antes de se matar, e adorna
seu pedestal: "Mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán
las grandes alamedas por donde pase el hombre livre para construir
una sociedad mejor".
crossi@uol.com.br
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