São Paulo, quinta-feira, 17 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Alegrias e amarguras de um maestro

JOHN NESCHLING

Após a morte do maestro Eleazar de Carvalho, em 1996, o secretário da Cultura, Marcos Mendonça, convidou-me para dirigir a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.
Vivendo na Suíça e conhecendo a falta de vontade política reinante no Brasil, nessa área, minha reação inicial foi negativa. Estava à frente de orquestras e de um teatro de ópera europeus e não tinha intenção de voltar. Mário Covas e Marcos Mendonça, todavia, convenceram-me a assumir a reestruturação da Osesp, com a promessa de que seria construída uma sede paradigmática, com boa qualidade tecnológica, respeitando-se a programação artística internacional que eu projetaria.
Comecei a estruturar a "minha" orquestra, transformando-a, em cinco anos, num exemplo de excelência musical. Estamos prestes a embarcar para nossa primeira turnê norte-americana, em que apresentaremos 20 concertos em 18 cidades. Em 2003, faremos uma excursão idêntica à Europa e, para 2004, está prevista uma turnê pelo Oriente.
Gravamos, até agora, pelo selo sueco BIS, de reconhecido prestígio internacional, cinco CDs, de uma série de 25 que apresentarão ao mundo a música brasileira composta nos últimos três séculos. Tocamos 90 vezes por ano na Sala São Paulo, atingindo diretamente mais de 180 mil ouvintes. Empregamos mais de 300 pessoas. Editamos partituras que ficaram esquecidas nos últimos séculos. Entregamos ao público um Centro de Documentação Musical, com milhares de documentos históricos. Tocamos, neste ano, para milhares de crianças das escolas públicas, em programas educacionais, e atualizamos dezenas de professores de música da rede pública.
Chego diariamente à Sala São Paulo às 8h30 e raramente a deixo antes das 22h. Minha vida é a orquestra. Amargamente, sou obrigado a suportar invejas mesquinhas. Tal exercício fortalece a alma do artista. Porém, ser afrontado por um repórter deste jornal representou inaceitável ofensa, que merece protesto.


Como qualquer cidadão, não estou obrigado a revelar o valor dos meus salários, ainda que instado por repórteres


Por isso, insurjo-me, indignado, contra a invasão de minha vida pessoal, intromissão devastadora de garantias constitucionais, concernentes à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Não posso tolerar, em silêncio -porque incompatível com as leis do regime democrático-, que devassem as minhas contas, bisbilhotando despesas de hotéis e restaurantes frequentados por mim.
Se não bastasse a iniquidade desse procedimento, ele representa leviana exposição de minha pessoa aos azares da insegurança pública. Tampouco posso ficar calado ante as increpações de que mantenho um "contrato sigiloso" com a Fundação Padre Anchieta e falseei dados sobre os meus ganhos profissionais, que seriam pagos por meio de "operação triangular".
As afirmações foram publicadas após sérios protestos dirigidos ao repórter e não são verdadeiras. O contrato não é "sigiloso". Consubstancia um acordo de vontades entre uma fundação de direito privado e um artista. O seu conteúdo é do conhecimento do Ministério Público e do Tribunal de Contas. Tampouco falseei dados referentes aos meus ganhos ou recebi vencimentos por meio de "operação triangular". Jamais meus vencimentos foram reduzidos ou os recebi em dólar.
O equívoco, quanto à redução de ganhos, deve-se ao fato de que o jornalista não tinha conhecimento integral dos valores que me eram pagos pela Fundação Padre Anchieta. Quanto a receber em dólar, a moeda norte-americana foi utilizada apenas como referencial de valor. A maledicente referência a "operação triangular", dando a impressão de negócio escuso, explica-se por eu haver constituído uma empresa para gerir meus interesses profissionais, procedimento usual no meio artístico, sem nenhuma vedação legal ou ética.
A minha consciência determinou que escrevesse este artigo, embora, como qualquer cidadão, não esteja obrigado a revelar o valor dos meus salários, ainda que instado por repórteres, que não são autoridades competentes para formular tais exigências. Mas, em que pese o travo dessas amarguras, continuarei buscando atingir os horizontes mágicos sonhados para nossa grande orquestra.

John Neschling, 55, maestro, é diretor artístico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.


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