São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O governo Lula e a conciliação das elites

TARSO GENRO

Os historiadores mais sérios do país sempre mostraram que, nos momentos agudos de crise no Brasil, recorreu-se a uma "conciliação das elites". Por esse contrato político, os setores dominantes secundarizavam as suas divergências e pactuavam formas institucionais e medidas econômicas pelas quais ajustavam provisoriamente os seus contenciosos. Ato contínuo, afastavam da cena política, pela força ou pela cooptação, as classes não-proprietárias.
Esse processo promoveu atrasos nas nossas instituições democráticas. Permitiu, igualmente, uma intensa "acumulação primitiva" em diversas atividades capitalistas, foi tolerante com a sobrevivência de formas semi-escravocratas e, além disso, foi compassivo com as oligarquias, que ainda usam distintas formas de dominação que lembram o feudalismo. Uma parte da esquerda baseia-se no precedente da "conciliação" para impugnar o governo do presidente Lula. Essa posição de impugnação tem três pressupostos, nem sempre explícitos, que devem ser lembrados.
O primeiro pressuposto é que seria possível instalar condições de governabilidade democrática sem um acordo com os empresários e, particularmente, com o grande empresariado; o segundo pressuposto é que seria possível criar condições para o crescimento econômico e uma inserção mundial sem sustentação acordada com a iniciativa privada; o terceiro pressuposto é o de que o governo poderia manter o padrão de vida e, logo, o apoio de vastos setores médios e das classes trabalhadoras se rompesse com a "comunidade" financeira internacional.




O governo do presidente Lula não é um governo "de esquerda". É um governo que tem a hegemonia de um partido de esquerda



Há, porém, um macropressuposto que envolve os demais: o de que seria possível, no atual quadro econômico e político mundial, um governo que encaminhasse soluções de "tendência socialista" e as mantivesse sem o recurso da força. As posições da esquerda anti-Lula fazem pensar que, mesmo que o governo encaminhasse medidas socializantes, ele manteria a coalizão de forças que o sustenta. O que é irreal.
Ora, o governo do presidente Lula não é um governo "de esquerda" no sentido clássico. É um governo que tem a hegemonia de um partido de esquerda, num acordo político que tem a segurança jurídica como elemento democrático vertebral da governabilidade. Caso o governo rompesse com a frente que o sustenta, teria enormes dificuldades para governar e poderia lançar o país no desastre e o fazer perder uma singular oportunidade de retirá-lo do atraso e da estagnação.
Mas a preocupação que está na base das críticas feitas pela esquerda é justa e tem precedentes em nosso país. É a preocupação de que mais uma vez, mesmo com o PT no governo, os governantes sejam cooptados para um processo conciliatório, agora de "novo tipo". Um processo novo, "perfumado", que concilie os "de cima" para resolver a questão do crescimento, porém sem distribuição de renda e sem democratização real do Estado.
A questão fundamental, porém, para avaliarmos o sentido do atual governo é considerar que ocorreu uma grande mudança nos últimos 30 anos. Ela reorganizou o sistema interno de interesses em cada país e, logo, a movimentação destes na esfera da política; redesenhou a questão nacional e, ao mesmo tempo, tornou coesivos os interesses nacionais dos países "ricos", via capital financeiro; finalmente, eliminou os projetos nacionais clássicos, baseados na existência de uma logística de blocos.
Essa nova situação, originária da eliminação dos "dois campos" políticos na cena global (socialismo e capitalismo), repôs de forma diversa tanto a "questão nacional" como a "questão democrática". Esta, por exemplo, para ser resolvida sem guerra civil, precisa do suporte de um novo bloco dirigente, acordado com base em algumas idéias: a idéia de nação que deve conter uma classe empresarial forte, inclusive com força competitiva global; um Estado forte, por ser democrático, permeado pelo controle público e social; e uma estrutura de classes interna, com força integradora, fundada num forte mercado interno com renda bem distribuída.
É isso que deve unir a maioria da nação e é isso que demanda a unidade política atual, que visa criar as condições de transição para um outro modelo econômico, que, de qualquer forma, é preliminar incontornável para o futuro democrático do país. No segundo ano do governo Lula enfrentaremos novos desafios para a construção desse "novo bloco social e político" com capacidade dirigente. Ele será heterogêneo ideologicamente, mas é o único fiador possível do "novo contrato social".
Se isso não ocorrer, nossos críticos poderão ter razão. Mas é bom recordar que quem sucedeu Prodi e D'Alema, na Itália, como representação de "bloco dirigente", não foi Bertinotti, da Refundação Comunista. Foi "O Cavalheiro" Berlusconi. E ele está, sem dúvida, mais próximo do ex-presidente Collor do que propriamente do Zé Maria, do PSTU. Ou da senadora Heloisa Helena, hoje sem partido.

Tarso Genro, 56, advogado, é ministro da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República. Foi prefeito de Porto Alegre, pelo PT (1993-96 e 2001-02).


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Luiz Flávio Borges D'Urso: A advocacia que defendemos

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.