São Paulo, quarta-feira, 18 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A disputa simbólica

MARILENA CHAUI

Em política, há duas grandes disputas: a definidora da própria política, isto é, a disputa pelo poder; e a disputa simbólica, isto é, pela ocupação de um lugar onde se reconheça uma imagem definida por valores postos pela sociedade.
Do ponto de vista simbólico, o PT, ao definir-se não como um partido para os trabalhadores, e sim dos trabalhadores, ocupou o lugar definido pela criação e conservação de direitos civis e sociais dos economicamente explorados, socialmente excluídos e politicamente subalternos. Na disputa simbólica, o campo dos direitos ou da cidadania plena definiu a imagem do PT, diferenciando-o, por exemplo, do PSDB, que ocupou o lugar simbólico denominado "modernidade séria e responsável".


A crítica é hipócrita porque pretende atingir o governo Lula com um episódio envolvendo o casal Garotinho, em 2002


Historicamente, porém, a disputa simbólica sofreu um deslocamento. De fato, a oposição ao governo Collor introduziu o tema da ética na política, e as circunstâncias fizeram com que esse lugar simbólico também fosse ocupado pelo PT. Todavia, diferentemente do lugar simbólico dos direitos, o da ética na política não é ocupado sem contestação, porque outros partidos o disputam continuamente. Por isso, tais partidos e os meios de comunicação procuram manter os olhos da população voltados para esse lugar, buscando fatos reais ou imaginários que destituam o PT.
Se, de janeiro de 2003 a fevereiro de 2004, acompanharmos as ações oposicionistas, os noticiários, os editoriais e as colunas políticas dos jornais, rádios e televisões, notaremos que operam de modo a retirar do PT os dois lugares simbólicos que ocupa.
No caso dos direitos, isso ficou claro, por exemplo, com as tentativas de desqualificar a política internacional e as várias políticas sociais iniciadas, de identificar a política econômica atual com a do governo anterior, de interpretar as reformas da Previdência e tributária como destruição de direitos (quando elas buscaram quebrar privilégios travestidos de direitos). Em certos momentos, aliás, somos colocados diante de algo paradoxal, pois procura-se destituir o PT desse lugar simbólico, afirmando-se que o atual presidente da República não tem o direito ao cargo porque seria intelectualmente inculto, ou seja, ergue-se contra Lula aquilo mesmo que fez o PT nascer e ocupar o lugar simbólico dos direitos, isto é, a luta contra os preconceitos de classe que, pela discriminação e a exclusão, negam cidadania aos trabalhadores!
Mas é no ataque ao lugar simbólico da ética na política que a disputa é mais acirrada e ganha ares consistentes. Os alvos do ataque têm mudado no correr dos tempos. Atualmente, o alvo é o caso do ex-assessor de José Dirceu. Por um lado, a crítica é válida e consistente, pois tudo indica que houve corrupção.
Por outro lado, a crítica é hipócrita porque: a) pretende atingir o governo Lula com um episódio envolvendo o casal Garotinho, em 2002, no Rio de Janeiro; b) não levanta a causa do problema (que também atingiu, por exemplo, assessores de FHC, e levou um amigo a defender publicamente a tese da imoralidade constitutiva da política), qual seja, o inadequado sistema eleitoral, que induz a procedimentos inaceitáveis; afinal, é um segredo de polichinelo como são financiadas as campanhas eleitorais no Brasil; c) não menciona a proposta de reforma política, publicada em livro pelo Instituto da Cidadania, que, no dia 1º de julho de 2003, a entregou ao Executivo e ao Legislativo, tendo sido discutida e aprovada por uma comissão especial (pluripartidária, com 45 membros) criada pelo presidente da Câmara, João Paulo; a reforma (que prevê o financiamento público das campanhas) não será um decreto presidencial, e sim uma ação do Congresso Nacional.
O que se esperaria dos defensores da ética na política? Que tomassem o episódio como ocasião para expor claramente à sociedade o desastre do sistema eleitoral, avaliassem a proposta do Instituto da Cidadania e o documento do relator da comissão parlamentar especial, fizessem propostas de mudanças e persuadissem a sociedade brasileira a exigir a reforma.
Não é, porém, o que temos visto, porque a questão não é a ética na política nem a reforma política, e sim a disputa simbólica para destituir o PT do lugar que ocupa.

Marilena Chaui, 62, professora de filosofia política e história da filosofia moderna da USP, é autora, entre outros, de "Cultura e Democracia" (Ed. Cortez) e "A Nervura do Real" (Companhia das Letras).


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