São Paulo, quarta-feira, 18 de fevereiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O véu e outras coisas mais

LUIZA NAGIB ELUF

Em razão de polêmica que se iniciou na França, onde se discutia a possibilidade da proibição do uso do véu islâmico nas escolas e repartições públicas, o que se concretizou com a recente aprovação de lei nesse sentido pelo Parlamento, escrevi um artigo observando que o debate poderia se estender a outros países. Em meu texto, teci considerações que desagradaram alguns membros da comunidade muçulmana, gerando da parte deles uma resposta, também em forma de artigo, nesta mesma coluna. Constatei, então, equívocos de interpretação que julgo conveniente esclarecer.
Escrevi meu texto com o objetivo de propor critérios que tornem compatível a liberdade de prática religiosa com os direitos inerentes à cidadania, à luz do sistema jurídico brasileiro, que consagra a igualdade de gênero.


O véu viola direitos da cidadania universalmente reconhecidos. Talvez fosse razoável usá-lo na Idade Média


A discussão sobre o véu não pode ficar restrita à questão religiosa. Disseram os articulistas islâmicos, no texto aqui publicado, que "o uso do véu não é uma regra das pessoas, mas sim de Deus, e ele é citado no Alcorão como um comportamento da mulher muçulmana". Sem pretender discutir com Deus, entendo que essa peça de vestuário feminino não se limita a identificar a usuária com a sua opção de fé. Trata-se, na verdade, de um símbolo determinante da posição da mulher na sociedade. Sob o pretexto de "proteger" a mulher dos perigosos desejos masculinos, o véu é, de fato, um poderoso instrumento de opressão.
O debate na França enveredou pela questão do Estado laico, talvez porque argumentar com fundamento nos direitos da mulher seja mais difícil. Por essa razão, todos os chamados símbolos religiosos ostensivos, como os quipás usados pelos judeus e as cruzes envergadas pelos cristãos, tiveram de ser, também, restringidos. Tal providência, porém, não se justifica, pois o fulcro do problema não é a profissão de fé. Estamos tratando, isto sim, da condição feminina. Está evidente que o objetivo, na França, é proibir o véu, não os símbolos religiosos em geral.
A questão primordial, que os membros da comunidade islâmica não enfrentaram em seu artigo, é a posição inferior das mulheres em sociedades muçulmanas. O véu é só a ponta do iceberg.
Em certos países, nos quais o islamismo impera, não há separação entre religião e Estado, sendo que as regras de conduta, as leis e os códigos são ditados com base no Alcorão. No campo dos direitos civis, por exemplo, as mulheres são tratadas como semi-incapazes. Quando os ascendentes morrem, em determinados países, elas não herdam nenhum bem, apenas os filhos homens se beneficiam da sucessão hereditária; em outros locais mais benevolentes, as mulheres recebem a metade da parte que cabe aos varões. Elas têm um sem-número de dificuldades para exercer qualquer atividade fora do lar e precisam de autorização do marido ou do pai para todos os atos da vida civil, inclusive para viajar!
Recente notícia de imprensa deu conta de prisões de mulheres em país muçulmano pelo "crime" de dirigir automóvel, conduta expressamente proibida para a população feminina. No direito de família, o divórcio só é permitido por iniciativa do marido, e a mulher perde, facilmente, a guarda dos filhos. O testemunho judicial prestado por uma mulher vale a metade do de um homem, sendo, portanto, necessários dois depoimentos uníssonos de mulheres para contradizer a palavra masculina. Em muitos casos, o testemunho de mulheres e de não-muçulmanos nem sequer é admissível.
Em setembro de 1995, realizou-se a 4ª Conferência Mundial da Mulher, promovida pela Organização das Nações Unidas, em Pequim. Tive a honra de fazer parte da delegação oficial que representou o Brasil no evento, e várias foram as oportunidades em que presenciei as manifestações das delegações de países islâmicos. É claro que a maioria esmagadora dos representantes dos países membros era composta por mulheres, mas os Estados muçulmanos, com raras exceções, designaram homens para falar sobre a situação da mulher. Justamente essas delegações negaram-se a admitir, oficialmente, que as mulheres tinham direitos sexuais.
É preciso lembrar da bárbara extirpação do clitóris e dos lábios vaginais, que é praticada, em algumas comunidades islâmicas, em meninas e adolescentes. A todos os povos civilizados, tal prática causa horror. No Brasil, constitui crime de lesão corporal. É evidente que não se pode estabelecer uma regra absurda qualquer e depois justificá-la com base em preceitos religiosos. A poligamia, por exemplo, é admitida por certas religiões, mas nossa legislação a proíbe, e a ninguém ocorrerá dizer que isso é preconceito ou fere a liberdade de credo.
O uso do véu não pode ser destacado do contexto de opressão que cerca a mulher muçulmana, que não tem o direito nem de sair à rua desacompanhada. O véu atrapalha a prática de esportes, o desenvolvimento físico, o bem-estar corporal, a locomoção, enfraquece os cabelos, impede o exercício de determinadas profissões, enfim, viola direitos da cidadania universalmente reconhecidos. Talvez fosse razoável usá-lo na Idade Média, nos primórdios do Islã. Atualmente, é um empecilho injustificável. A religião muçulmana, como de resto todas as religiões, precisa adaptar-se à evolução da posição da mulher na sociedade.

Luiza Nagib Eluf, 48, é procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo e autora de "A Paixão no Banco dos Réus", entre outros livros. Foi secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça (governo Fernando Henrique Cardoso).


Texto Anterior:
TENDÊNCIAS/DEBATES
Marilena Chaui: A disputa simbólica

Próximo Texto:
Painel do leitor

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.