São Paulo, quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Perspectivas da medicina translacional

EDUARDO MOACYR KRIEGER


É tempo de dar uma ênfase especial para acelerar a aplicação do que conhecemos em benefício dos pacientes

COM O CRESCIMENTO exponencial das descobertas após a sistematização do método experimental liderada por Galileu e pelos homens da Renascença, no século 16, aumentaram os desafios de transferir o conhecimento novo para aplicação.
Um belo exemplo de avanços feitos sem defasagem, unindo as duas áreas, foi dado pela obra notável de Pasteur.
De fato, se suas pesquisas, por um lado, avançaram o conhecimento, lançando as bases da moderna microbiologia, elas, ao mesmo tempo, foram aplicadas com importante impacto no agronegócio (fermentação dos alimentos) e na medicina (vacinas e prevenção das infecções).
O "Silicon Valley", importante centro da indústria eletrônica da Califórnia, foi criado há cerca de 60 anos nas vizinhanças da Universidade de Stanford, inaugurando uma nova fase de interação da universidade-empresa e agilizando, assim, a transferência do conhecimento para a aplicação.
A integração das atividades do governo, das universidades e das empresas nos modernos sistemas de ciência, tecnologia e inovação (CT&I) existentes nos países industrializados praticamente eliminou a defasagem entre a descoberta e a aplicação e criou o círculo virtuoso de retroalimentação positiva entre a pesquisa e o desenvolvimento socioeconômico.
Diante do sucesso verificado em diferentes setores, em grande parte devido à rapidez com que as descobertas são transferidas para a aplicação, não surpreendeu que a "American Association for the Advancement of Sciences" (AAAS), que edita o periódico "Science", tenha criado em outubro último um novo semanário, o "Science Translational Medicine". Para tanto, teve grande influência Elias Zerhouni, que até recentemente dirigiu o "National Institutes of Health" (NIH), responsável pela pesquisa médica nos EUA, com um orçamento anual de cerca de US$ 30 bilhões.
Ele vem ressaltando que os enormes progressos no avanço do conhecimento alcançados pela pesquisa biomédica fundamental nos últimos 50 anos não foram acompanhados de um impacto equivalente na prática médica. Que não se deve perder a ênfase de financiar a pesquisa básica, até porque sem novas descobertas não há o que transferir para aplicação, mas que é tempo de dar uma ênfase especial para acelerar a aplicação do que conhecemos em benefício dos pacientes, criando assim um novo paradigma na pesquisa médica chamada "bench to bed" (da bancada à clínica) ou "translational medicine".
Essas teses já haviam sido defendidas por Claude Lenfante ("New England J. Med.", 349:868, 2003), que também dirigiu o "NIH", e nos simpósios organizados, de 2000 a 2005, pelo "Institute of Medicine da National Academy of Sciences".
Os debates sobre a medicina translacional vêm crescendo de importância nos últimos anos. Várias universidades criaram departamentos, institutos e mesmo cursos com essa nova denominação. Há inclusive setores da área biomédica já utilizando a nova nomenclatura, como a "fisiologia translacional", que ocupa parte das revistas da área para publicar seus artigos. O conceito foi, igualmente, ampliado: não se trata só de agilizar a transferência dos resultados da pesquisa de laboratório para aplicação em prevenção, diagnóstico e tratamento das doenças, mas também de programar pesquisas de laboratório para avançar conhecimentos inspiradas em problemas clínicos não solucionados (da bancada à clínica e da clínica à bancada). Um dos objetivos da medicina translacional é naturalmente o de desenvolver novas moléculas para aplicação terapêutica, mas eles, na realidade, são mais amplos e complexos. A ideia é utilizar conhecimentos originados não só em laboratórios biomédicos como os provenientes de outras disciplinas (engenharia, química, física etc.) para, em um primeiro bloco de transferência, testar sua validade em pesquisas clínicas (de fisiopatologia, de testes e de ensaios clínicos etc.). Em um segundo bloco, transferir o conhecimento obtido na investigação clínica para a prática médica e a melhoria dos serviços de saúde, programando pesquisas sobre eventos, eficácia e custo-efetividade, comparando procedimentos já testados.
Em nosso país, a rede de investigação clínica, com a participação de 32 hospitais universitários e criada pelos ministérios da Saúde e de Ciência e Tecnologia, que já realiza ensaios clínicos multicêntricos visando a melhoria da assistência médica, pode representar importante papel na implementação de projetos dentro da nova visão proposta pela medicina translacional, especialmente se criar equipes multidisciplinares de pesquisa.
Naturalmente, os setores do governo, das universidades e das empresas que tratam dos problemas de saúde, além de continuarem a investir na criação de novos conhecimentos apoiando a pesquisa básica, o que, como já foi acentuado, é fundamental, não devem ficar alheios às propostas que a medicina translacional está trazendo para otimizar as potencialidades do método científico e da multidisciplinaridade da ciência para, assim, acelerar a transferência do conhecimento para aplicação e aprimoramento dos serviços de saúde.


EDUARDO MOACYR KRIEGER , é diretor da Unidade de Hipertensão do InCor. Foi o primeiro presidente da Federação das Sociedades de Biologia e Medicina Experimental e da Sociedade Brasileira de Hipertensão e presidiu a Academia Brasileira de Ciências de 1993 a 2007.

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