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São Paulo, terça-feira, 18 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O duro aprendizado da esquerda

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

Numa democracia , a esquerda no poder amplia as condições de implementação da agenda política, desde que assuma rapidamente seu novo papel e chegue a uma visão panorâmica do funcionamento do governo e do Estado. Na oposição, dificilmente o consegue, pois representa antes de tudo aqueles grupos que, sendo prejudicados no sistema vigente de distribuição da riqueza material e cultural, aglutinam-se socialmente e se identificam no plano da política com o intuito de alterá-lo em nome da justiça social.
No Brasil, por exemplo, parece-me evidente que o MST é, hoje em dia, o movimento social mais ativo, e pouco importa se grande parte de seus integrantes seja recrutada na periferia paupérrima das grandes cidades. Nada mais natural que essa população, originária de uma emigração recente do campo para a cidade, ainda pense a melhoria de seus padrões de vida ligada à simples posse da terra. E vem a ser igualmente natural que intelectuais da classe média, orgânicos ou não, juntem-se a essas reivindicações na esperança de realizar sonhos de uma classe sem raízes e, portanto, pronta para aderir a qualquer utopia. Assim sendo, não se pode esperar daí visões efetivamente totalizantes.
Como a esquerda assume essa perspectiva? No plano econômico, confronta-se com a tarefa inesperada de gerir o capitalismo, a fim de que os mais pobres sejam beneficiados com nova distribuição e aumento da riqueza social, sem contudo emperrar seu desenvolvimento. Nesse aprender a agir em vista do todo, o político de esquerda muda de ótica, por conseguinte de linguagem. Nessa transmutação, contudo, precisa deixar de se pensar como revolucionário, reconhecendo que o Estado não começa do zero, que a política pode vir a ser mais racional, embora nunca será substituída pela organização racional das coisas. Não é assim que se arma para a batalha a favor da modernização do Estado nacional?
Quando a conquista do poder se faz pelo voto, o governante se converte em representante da nação por inteiro, e não de uma parte dela, devendo, pois, agir desse novo ponto de vista, a despeito das limitações do programa em vista do qual foi eleito. Dessa ótica, é auspicioso saber que os novos governantes do PT reconhecem o erro de não terem apoiado projetos de reforma apresentados pelo governo anterior. Não é assim que conquistam as armas da efetividade? Mas, então, cabe-lhes elucidar os diferenciais de sua ação política, já que, caso contrário, ficará evidente que não sabem como mudar, apenas querendo o poder pelo poder, tendo vencido graças a um estelionato eleitoral.
A todos nós interessa que um governo de esquerda tenha êxito e rapidamente aprenda a agir do ponto de vista do Estado. As instituições da democracia brasileira têm se mostrado suficientemente fortes para sustentar esse processo de transição rico de promessas e de aventuras. No entanto existe, a meu ver, um ponto frágil a ser levado em conta. Nessa fabulosa transformação por que passa o capitalismo mundial, em que o Estado se vê enfraquecido no que respeita à sua soberania e a seu patrimônio, mas fortalecido em suas funções reguladoras, o Brasil já avançou bastante, privatizando seus passivos e dando os primeiros passos no sentido de criar agências cuja burocracia seja capaz de regular tanto os processos produtivos como a rede nacional de prestação de serviços.


Durante o aprendizado, não convém destruir o que já foi construído em nome de projetos abstratos


Aqui não vem ao caso avaliar os sucessos e os fracassos dessa transformação, mas a esquerda, a meu ver, precisa entender que o conflito distributivo operando no seio do novo Estado se desenvolve sobretudo na maneira de regular o novo capitalismo baseado no controle da informação e de seus agentes. Não tem, pois, cabimento sabotar as recém-criadas instituições reguladoras, por mais defeituosas que sejam. Durante o aprendizado, não convém destruir o que já foi construído em nome de projetos abstratos, desligados de suas condições de efetivação.
Vale a pena exemplificar. Se as denúncias feitas pela imprensa são verdadeiras, assusta essa substituição de técnicos por políticos que está ocorrendo em vários ministérios, o que impede a modernização da burocracia estatal. No caso do Ministério da Educação, o Inep, em particular, precisa esclarecer como vai controlar o desempenho dos institutos do ensino público e privado, principalmente no caso das universidades privadas, que atualmente chegam a ter 70% do alunado. Em que pé ficará o Provão, hoje o único controle público das universidades privadas? Fui um dos primeiros a acusar a parcialidade desse processo de avaliação, mas hoje é o que temos, sendo melhor aperfeiçoá-lo e completá-lo do que simplesmente sabotar sua pouca eficiência.
É de estranhar, além do mais, que um artigo publicado recentemente nesta Folha, escrito pelo novo Ministro da Educação, por certo político experiente e já formado, continue a desfiar itens programáticos sem cuidar de suas condições de efetivação ("A revolução republicana", pág. A3, 9/3). Por certo noutras áreas há também casos preocupantes, principalmente aquele da CTNBio, num momento em que a questão técnica e política dos transgênicos se converte numa luta meramente ideológica; mas insisto nas dificuldades atualmente enfrentadas nas áreas de educação, ciência e tecnologia porque, na medida em que o governo Lula mergulha numa política econômica conservadora, com poucos recursos será possível dar um tremendo salto para modernizar essas áreas. E a sociedade brasileira só será moderna, com suas grandezas e suas mazelas, se esse salto tecnológico for dado, pois somente assim se estruturará como sociedade marcada pelo conhecimento.
Durante os anos 60, admirávamos aquela cena de "A vida de Galileu", de Brecht, em que o cardeal Bellarmine, eleito papa, muda de opinião conforme veste suas novas roupas. Não é lamentável, dizíamos, pessoas pensarem diferentemente conforme as posições que viessem a ocupar. Hoje em dia, quando a idéia de uma completa libertação dos constrangimentos colocados pelo capital se afasta do horizonte, quando, portanto, somos obrigados a relativizar nossos anseios e, por isso, a reconhecer a viscosidade da política, só há esperança se os novos governantes de esquerda aprenderem rapidamente a se movimentar com suas novas vestimentas e souberem muito depressa, porque a urgência é grande, distanciar-se dos monges que se obstinam em não trocar de hábito e continuam cumprindo suas funções políticas de pregar no deserto.

José Arthur Giannotti, filósofo, é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente para o Mais!.


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