São Paulo, quarta, 18 de março de 1998

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O autoritarismo e o presente


Quando a impunidade grassa, vem à lembrança a injustiça daqueles tempos. Caminhamos, é certo, mas muito pouco
MARIO SIMAS

Há 25 anos, em São Paulo, o universitário Alexandre Vannucchi Leme foi torturado até a morte nos porões da ditadura militar. O fato repercutiu nacional e internacionalmente, sensibilizando o papa Paulo 6º e mobilizando, em nome do respeito ao ser humano, o que havia de melhor em nossa sociedade, para que a verdadeira Justiça se instalasse no Brasil.
Os Poderes da República não ignoraram, do menor ao mais alto escalão, o brutal e covarde assassinato. Com a exceção do jurídico, honroso e limpo voto vencido do ministro-general Rodrigo Octávio Jordão, do Superior Tribunal Militar, não houve decisão ou determinação do Poder Judiciário ou do Ministério Público, por mais instados, para que a morte do infortunado jovem fosse apurada em toda a extensão e seus autores fossem responsabilizados.
Mestres (não comprometidos, por ação ou omissão, com o sistema) e alunos da USP constituíram comissões paritárias, para que o país conhecesse o crime perpetrado contra o preso incomunicável nos xadrezes do DOI-Codi, do 2º Exército. Dezoito centros acadêmicos da nossa universidade, três da PUC/SP e outros do interior do Estado declararam-se em luto.
A igreja, monoliticamente, assumiu postura obediente ao imperativo evangélico de amor à verdade e à justiça e não se calou. Dentre outros importantes atos, foi rezada missa, em 30 de março de 1973, na Catedral da Sé, vista por 3.000 participantes e concelebrada pelo bispo de Sorocaba (cidade de Alexandre) e por 15 padres.
O cardeal Arns falou a respeito da vida e da dignidade do homem: "Se é grande a dor de uma mãe que vê seu filho morto, muito maior é a daquela que nem pode ver seu filho morto". Os algozes do estudante de 22 anos, quartanista de geologia, buscando fugir à responsabilidade, haviam sepultado às escondidas e em lugar secreto seu cadáver, como se fora o de um indigente.
Hoje, quando a impunidade grassa em nossos pretórios e o rigor da lei penal abate-se apenas sobre os pobres, vem-nos à lembrança a injustiça daqueles tempos. Caminhamos um pouco, é certo -mas muito pouco.
O Exército, para nosso orgulho, deu-nos o general Cândido Rondon, que, no trato com os índios e em consonância com a igreja, sempre pregou: "Morrer, se preciso for; matar, nunca". Atualmente, na faraônica Brasília, também marcada pela violência em todas as áreas, um índio é queimado vivo, para gáudio de jovens abastados.
A vida e o sofrimento de Alexandre não podem ter sido em vão. É preciso ir adiante. A verdadeira política tem por fim promover a justiça -é uma lição milenar. A impunidade de ontem projeta-se no presente: Candelária, Corumbiara, Carajás, Carandiru e 42º DP, processos que não caminham, em que a justiça não se faz presente. Os discursos políticos, por melhor que seja a retórica, sem a consequente ação de nada valem. Não passam de sofismas.
Chega a ser inacreditável que, para certos olhos, nos dias que correm, lutar para que os grandes valores humanos sejam respeitados e para que a Justiça prospere esteja fora de moda. Não se deve esquecer a lição que há de nortear sempre os verdadeiros políticos e os autênticos juízes: "Os que abandonam a lei louvam o ímpio; os que observam a lei o combatem" (Provérbios, 28, 4).

Mario Simas, 63, advogado, é membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e autor do livro "Gritos de Justiça". Foi presidente do Centro Santo Dias de Defesa dos Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo.



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