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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Esquerda em processo

TARSO GENRO

Há muitos anos venho escrevendo na Folha a respeito dos dilemas que envolvem as ideologias da esquerda contemporânea e as amargas heranças das experiências socialistas do nosso tempo. Esse debate agora renasce com o PT no governo. Grandes transformações modernizantes e reformas democráticas são originárias das lutas da esquerda. Nenhuma das grandes conquistas sociais do nosso tempo esteve ausente das agendas da esquerda socialista ou social-democrata.
Os nossos grandes fracassos estiveram ligados diretamente à implantação do "modo de produção socialista", que, segundo Marx, determinaria a socialização da riqueza e da abastança. Na vida real, essas experiências terminaram pervertendo-se em formas ditatoriais de redistribuir a pobreza. A consequência dessa redistribuição foi, por exemplo, o retorno ao capitalismo (URSS), a estagnação ditatorial (Coréia) ou o império da barbárie depois da queda (Afeganistão). O retorno ao capitalismo na antiga URSS resolveu os problemas das liberdades políticas, mas nenhum dos problemas sociais e de caráter nacional. Tornaram-se sociedades mais civilizadas e mais democráticas aquelas que realizaram um reformismo "forte", promovendo profundas transformações econômicas, culturais e no modo de vida dos cidadãos comuns.
As disputas que estão ocorrendo sobre os rumos do governo Lula estão relacionadas com o juízo sobre esses fracassos, que não são somente fracassos da "prática" socialista, mas também denunciam as limitações do aparato teórico que acompanhou o movimento socialista. Este combinava a visão do messianismo proletário, contida em algumas obras de Marx, com a simplificação maniqueísta da sua rica elaboração teórica. Esta, empobrecida tanto pelo marxismo soviético na sua visão stalinista, como pelo trotskismo rebelde, cujo aparato conceitual era também derivado do "leninismo".
Lênin, ao estudar melhor Hegel, já afirmara que preferia o idealismo inteligente ao materialismo burro. A designação, aliás, de uma "nova fase do marxismo" como "leninismo" foi feita pelo próprio Stálin, que a forjou, contra a visão do líder bolchevique. O nosso conflito hoje no partido, evidentemente, não é esse. Mas não pode deixar de ser qualificado como um conflito da parte minoritária do PT, que apresenta como "utilizável" -em diversos níveis- o velho legado bolchevique, com os que consideram-no superado, em diversas gradações (pela vida, pela economia, pelas novas formas de constituição da subjetividade social, mesmo no capitalismo turbinado da era Bush).
Passemos a exemplos concretos das nossas diferenças. O governo nega-se a criar condições políticas para o rompimento da vasta frente que elegeu Lula e modula cautelosamente os seus movimentos. Quer dar finalidade estratégica a essa frente, porque entende que qualquer movimento que o leve ao isolamento tanto pode promover o retrocesso, como favorecer o populismo, sempre à espreita, com as soluções mágicas e caudilhescas.


O debate que travamos não é entre uma visão de "esquerda" e uma visão de "direita"


Nesse sentido, o partido se nega a ser "vanguardista", tipo bolchevique, para promover a aceleração da luta de interesses, mas quer conciliá-los através de um acordo com sentido policlassista. O objetivo é criar condições para enfrentar o domínio global do capitalismo especulativo, que desarma políticas econômicas, ataca moedas fracas e gera o caos e a instabilidade. Sem isso, qualquer projeto é impossível.
O partido no governo, portanto, privilegia a "segurança" como condição mínima para as mudanças e opera nessa direção de maneira aberta. Não é um partido que exacerba a luta de classes, porque essa exacerbação fragiliza o governo ante o domínio do capital financeiro globalizado: esta é a primeira e estratégica condição a ser assumida. Tudo para que possa ocorrer uma transição -internamente negociada- para um modelo de desenvolvimento de produção, emprego e distribuição de renda.
O debate que travamos, em consequência, não é entre uma visão de "esquerda" e uma visão de "direita", ou mesmo sobre se o partido no governo perdeu seus compromissos programáticos. É sobre duas visões de esquerda, uma em mudança e outra tradicional. Trata-se, para nós do governo, de dar sentido no presente a uma utopia democrática de caráter reformista, que quer produzir conquistas civilizatórias que não tenham possibilidade de retrocesso -o retrocesso que ocorreu em todas revoluções ou "golpes" esquerdistas até hoje realizados.
Toda a esquerda, em escala mundial, está em processo de mudanças. Essas mudanças tanto podem se dar num sentido negativo e anti-humanista, como fez uma boa parte da social-democracia européia (que acabou renunciando à capacidade regulatória e distributiva que caracteriza o Estado moderno e se jogou na defesa do belicismo americano), como positivo.
Na verdade, não há nem precedente histórico nem uma teoria da transição de um modelo de modernização conservadora vinculados ao capital financeiro para um modelo produtivista de crescimento acelerado e inclusão social. Temos, ao mesmo tempo, que teorizar e praticar. Devemos fazê-lo com cautela para não jogar essa experiência fora. O dilema fundamental da esquerda, nesse contexto, é responder ao desafio posto pela contradição aguda entre inclusão e exclusão, que, não resolvido, só pode levar a soluções caudilhescas.
Esse confronto, se não for enfrentado na ação de governo, através de um novo modelo de desenvolvimento, com o apoio de vastos setores de todas as classes sociais, inclusive das trabalhadoras, que ainda vivem à sombra da lei e do direito e que cultuam, cada vez mais, a segurança como valor fundamental das suas vidas cotidianas, pode comprometer até mesmo a democracia política.


Tarso Genro, 56, advogado, é ministro da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República.


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