São Paulo, terça-feira, 18 de maio de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

O escudo do desenvolvimento

As forças que governam o Brasil há duas décadas difundiram a idéia de que não há alternativa prática ao rumo que fazem o país trilhar. Qualquer desvio desse caminho estreito e áspero seria aventura irresponsável. Penetrando a consciência da classe média, essa idéia gerou sentimento de impotência. Um Brasil que queira desenvolvimento com justiça precisa repudiar as premissas falsas dessa abdicação.
Para voltar a crescer, o país tem de levantar escudo sobre seu desenvolvimento. O escudo não substitui a democratização de oportunidades de emprego, produção e ensino que representa o cerne da alternativa que buscamos. Entretanto, não se firma tal alternativa se não for protegida dos ciclos de liqüidez na economia mundial. Seis elementos compõem o escudo.
O primeiro elemento é a elevação compulsória da poupança privada e pública. Em princípio, elevação de poupança é mais efeito do que causa de crescimento. Não se inicia, porém, dinâmica de crescimento na contramão dos interesses e preconceitos dos mercados financeiros sem acúmulo forçado de recursos nacionais. Os regimes previdenciários são o instrumento privilegiado para exigir poupança progressivamente proporcional à renda de cada um. O segundo elemento é a multiplicação de canais entre poupança de longo prazo e investimento de longo prazo, mesmo quando seja preciso recorrer a instituições novas ou híbridas: por exemplo, a fundos, estabelecidos pelo governo, porém administrados de maneira competitiva, profissional e independente, que invistam a poupança previdenciária na produção, inclusive em conjuntos diversificados de empreendimentos emergentes. O terceiro elemento é a manutenção de carga fiscal elevada. Contrariamente ao que se diz, não pode ser muito mais baixa do que a carga sofrida hoje. Inevitável dar posição central a tributos como o Imposto sobre o Valor Agregado, que geram mais receita com menos distorção e desincentivo do que outros impostos. Mas que são regressivos e que por isso mesmo só se legitimam no bojo de um projeto democratizador de oportunidades. O quarto elemento é a disposição de renunciar, temporariamente, para que o Estado possa minimizar suas dependências, ao manejo anticíclico da política monetária e fiscal. O que não quer dizer que essa política deva ser pró-cíclica, agravando recessões com arrochos. O quinto elemento é a renegociação ordenada da dívida pública, facilitada pelo aumento, graças aos outros componentes do escudo, do poder de barganha do governo. Renegociação necessária para que se afirme a primazia da economia real sobre a confiança financeira. O sexto elemento é a prontidão para impor controles seletivos e circunstanciais sobre a saída do capital brasileiro, quando necessário para permitir a renegociação da dívida.
Essas iniciativas não definem a estratégia de desenvolvimento de que precisamos. Não substituem a tarefa de ancorar crescimento econômico em democratização de oportunidades; de mudar o financiamento, o conteúdo e, portanto, a qualidade do ensino público; e de introduzir as instituições de uma democracia mudancista, de alta energia. Ampliam, porém, a indispensável margem de manobra. Ao organizar mobilização forçada dos recursos nacionais, inauguram aquilo de que o Brasil precisa com mais urgência hoje: uma economia de guerra sem guerra.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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