São Paulo, domingo, 18 de maio de 2008

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Dizem os pais

LEDA PAULANI E AIRTON PASCHOA


A disputa entre Mercadante e Virgílio denuncia que não há no país força política capaz de enfrentar o velho patrimonialismo nacional


QUEM APRECIA humor mórbido deve ter se deleitado ultimamente com ver nesta seção da Folha uma disputa renhida de paternidade ("Diziam", Aloizio Mercadante, 16/3; "Tardia conversão", Arthur Virgílio, 23/3; "Dizem, ainda", Aloizio Mercadante, 6/4; "Distorções, ainda", Arthur Virgílio, 20/4).
Mas podemos tranqüilizá-los, aos pais presuntivos. Se Collor fecundou o ovo, foram os governos tanto de FHC quanto de Lula que o criaram, merecendo ambos assim, de acordo com a anedota popular, o nobre e litigado título. Pois pai é quem cria... Que criatura, porém, será essa por que tanto se encantam e terçam os valorosos senadores?
Dizem os pais que a criatura agora cresce (e não há dúvida de que devem estar igualmente embevecidos com seu ingresso recente na classe dos mais adiantados emergentes). Mas o amor de pai os impede de ver, junto com esse crescimento, cuja geração disputam, o manifesto risco de desindustrialização, produzido pela combinação de ortodoxia monetária levada ao limite da irresponsabilidade com indecorosa abertura financeira.
Dizem os pais que, a par do crescimento, há distribuição de renda e pagamento da dívida social (como se o Paraíso morasse logo acima da linha de pobreza). Mas o amor de pai os impede de ver que os programas sociais, por cujo melhor ou pior foco concorrem, produzirão, na melhor das hipóteses, alguns milhões a mais de consumidores, e não de cidadãos, a verdadeira matéria-prima, como lembra Conceição Tavares, com que se faz um país.
Dizem os pais que não se trata apenas de crescimento, mas de crescimento sustentado. Mas o amor de pai os impede de ver que a assim denominada estabilidade, cujo alcance é fruto de tão encarniçada disputa, assenta-se no fundamentalismo econômico, o qual vai cevando a casta de 20 mil famílias que, como não cansa de acusar Marcio Pochmann, detém 80% desse capital caído do céu que se chama dívida pública.
Mas a contenda revela mais do que parece e mais do que aquilo que já era sabido. O teor da disputa denuncia por si só que não há hoje no país força política capaz de enfrentar com destemor o velho patrimonialismo nacional, com o qual contemporizaram tanto o governo FHC quanto o governo Lula, conforme declarou recentemente Ciro Gomes em entrevista a este mesmo jornal. No Brasil, para termos idéia do descalabro, basta dizer que o índice de Gini de riqueza, a crer em estudos mais avançados, encosta na escandalosa marca de 0,9.
A hegemonia às avessas que Lula protagoniza, em que os dominados ou seus representantes podem assumir o comando moral da sociedade desde que não toquem em seus imorais fundamentos econômicos, traduz a combinação perversa, embora eleitoralmente eficaz, entre concessões à larga aos detentores do grosso da riqueza e distribuição de migalhas à maioria despossuída da população.
Fernando Haddad, em livro infelizmente ainda pouco conhecido ("Trabalho e Linguagem - Para a Renovação do Socialismo"), denuncia a arriscada comunhão de valores entre a classe dominante e o lúmpen: a extrema liberdade de que ambos os grupos gozam (os primeiros porque não têm problemas materiais, e os segundos porque não há solução para seus problemas) gera um perigoso descompromisso com as regras que garantem a coesão social.
Os governos de FHC e Lula não fizeram mais do que ratificar a vocação para o apartheid social inscrita no DNA do país, consagrando a fratura que sempre lhe foi constitutiva.
A certa altura do debate, assevera o senador Arthur Virgílio que se deu uma curiosa inversão no Congresso, com os parlamentares da oposição defendendo a política econômica do executivo federal enquanto os da situação a atacavam. Atirando no que viu, o senador acertou no que não viu.
O rumo da economia, daquilo que antes se subordinava democraticamente à instância política, já foi decidido. Oposição e situação podem se engalfinhar à vontade, podem trocar divertidamente de posição, que não afetam mais a autonomia da esfera econômica.
E é este, para além da comédia ideológica que envolve governos e partidos, o grande drama histórico que hoje vivemos. Resgatar a possibilidade do político, do tomar decisões nacionais e soberanas capazes de redirecionar nossa economia, de fazê-la sujeitar-se aos imperativos de uma nação que se quer integrar, constituirá o desafio das futuras gerações, órfãs hoje de pais verdadeiramente responsáveis.


LEDA PAULANI , 53, é professora titular da FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP), presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política e autora de "Brasil Delivery" (Boitempo, 2008).
AIRTON PASCHOA , 49, é escritor e autor de "Ver Navios" (Nankin, 2007).

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