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São Paulo, sexta-feira, 18 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A universidade pública a perigo

SERGIO MICELI

Faz pouco tempo, uma organização particular de ensino superior quis homenagear a apresentadora Hebe Camargo, concedendo-lhe o título de doutora honoris causa. O que há de estranho nesse gesto não é tanto o fato de se estar reverenciando uma personalidade do show business. O aspecto inusitado dessa ação entre amigos se prende à pretensão de autoridade cultural dos dirigentes da empresa educacional, cujos anúncios de página inteira na imprensa não veiculam importantes feitos ou descobertas em matéria científica. Tal episódio se encaixaria à perfeição ao que Schopenhauer chamava o "cômico pedante", quando se realiza uma ação que não está abrangida em seu conceito.
A notável expansão dos investimentos privados no ensino superior brasileiro, nos últimos 15 anos, o estardalhaço com que seus acionistas promovem eventos sob sua chancela, sem falar no fabuloso faturamento, terá decerto de suscitar reflexão a respeito de seu ínfimo apetite por pesquisa ou por projetos de fôlego nas áreas pouco rentáveis do ensino superior. A prioridade quase exclusiva dos novos midas do saber "delivery" são os cursos e carreiras que prometem perspectivas de profissionalização imediata.
Por generosas que tenham sido as facilidades governamentais dispensadas pela política do ensino superior na gestão FHC, nenhuma universidade particular nativa é capaz de se ombrear às prestigiosas universidades norte-americanas sob controle privado. Falta-lhes um projeto consistente de política científica e acadêmica, programas ambiciosos de pesquisa e um interesse empenhado pela aquisição e manejo de laboratórios, equipamentos e acervos.
Existe, pois, essa escancarada demissão, tanto por parte dos empresários do ensino superior, como dos dirigentes das fundações culturais subsidiadas por grupos financeiros e industriais, do papel de protagonistas na área cultural. Essas últimas preferem assumir uma política de eventos com ampla repercussão na mídia, ou então adotar um vezo preservacionista, em vez de bancar os riscos de intelectuais e artistas na ativa. Tal postura conservadora não tem nada a ver com a atitude de comprometimento de suas homólogas dos EUA.
Não é nada edificante a história do mecenato privado no país. Aos experimentos daqueles protetores das artes que exerciam seus pendores pelo condão das verbas públicas, prática que está longe de se ter esvaído, seguem-se hoje os bem comportados e apologéticos programas mantidos com recursos garantidos pela renúncia fiscal.
Apesar de ter sido duramente castigado durante os oitos anos de FHC, o sistema nacional público de ensino superior sobreviveu e continua sendo o núcleo duro da educação de ponta em nossa sociedade. É tão-somente nesse contexto histórico mais amplo que devemos encarar os impactos perversos da reforma previdenciária nas condições de produção intelectual e científica. Gostaria de me ater, de um lado, às consequências dessa iminente precarização da atividade cultural num país em que a sustentação material desse trabalho nunca logrou se desprender de recursos governamentais e, de outro, aos prováveis efeitos deletérios que o novo status funcional e a falta de perspectivas terão de imediato no tocante à atratividade e à viabilidade de uma carreira intelectual.
Podemos nos orgulhar de uma imprensa arrojada; não obstante muito da seiva e da força inovadora que azeitam as empreitadas da mídia dependem decisivamente de uma prática de investigação ousada na universidade.


O sistema nacional público de ensino superior continua sendo o núcleo duro da educação de ponta em nossa sociedade


O esvaziamento da universidade pública, com aviltamento dos salários, desapreço pelo trabalho acadêmico e perda da estabilidade funcional, a necessidade de distribuir tempo e energia entre dois ou três empregos docentes, a campanha antiintelectual vocalizada pelos arautos ressentidos da modernidade neoliberal, a progressiva desnacionalização do controle acionário e intelectual da atividade editorial, eis algumas das feições a que estaremos condenados.
A reforma da Previdência atinge o coração dos nutrientes institucionais de que se alimenta a reprodução social de sucessivas gerações de cientistas, intelectuais e artistas, ao romper o contrato firmado com esses quadros especializados, ora tachados como elites privilegiadas de classe média. A extinção da aposentadoria integral, o cálculo dos proventos pela média ponderada dos salários de uma carreira dependente de provas de mérito, a eliminação de regras de proporcionalidade pelos anos de trabalho já cumpridos, em suma, a extinção dos atrativos compensatórios para uma carreira sem ganhos materiais elevados será danosa para a vida cultural e desalentadora para os futuros ingressantes.
Dois caminhos, igualmente nefastos, poderão ocorrer: o trabalho intelectual se tornará reserva de mercado, restrita aos herdeiros de famílias abonadas, um abominável retrocesso elitista, ou então os praticantes de tais atividades ficarão a reboque das metas e conteúdos impostos pelo mecenato privado.
Manifesto-me favorável ao pagamento de uma contribuição pelos aposentados e à mudança dos limites de idade para aposentadoria, mas conclamo os colegas a rechaçarem todas as propostas conducentes à ruptura das condições institucionais capazes de garantir o "lazer estudioso", em nome da manutenção de um regime especial de trabalho para a atividade universitária nas entidades públicas. Estendo tais reivindicações às demais carreiras de Estado, em especial às do Judiciário.
A teia de significações detratoras que vem minando a imagem pública dos aposentados no serviço público, designados miseravelmente como inativos, a tal ponto que eles mesmos já começam a usar contra si tal disparate, sinaliza o veio das transações econômicas e políticas mobilizadas pelos futuros beneficiários dessa concordata previdenciária, alardeada como tábua de salvação para o mercado, o governo, a função pública, a justiça social, mas vivida por cada um de nós como um salve-se-quem-puder.
Aliás, quando os ideólogos da ordem querem infundir sutilezas ao dialeto de serviço, a emenda costuma sair pior do que a lição decorada. Basta atentar à desfaçatez com que se referem aos direitos dos funcionários públicos, como se fossem privilégios, talvez na expectativa de que a repulsiva peroração contra tais prerrogativas possa abafar os interesses dos grupos efetivos de privilegiados. Chega de eufemismos, de tecnicalidades, de palavras de ordem sopradas pelos prepostos do poder econômico.

Sergio Miceli é professor titular de sociologia na USP e autor, entre outras obras, de "Nacional Estrangeiro - História social e cultural do modernismo artístico em São Paulo" (Cia. das Letras, 2003).


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