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TENDÊNCIAS/DEBATES
A universidade pública a perigo
SERGIO MICELI
Faz pouco tempo, uma organização particular de ensino superior
quis homenagear a apresentadora Hebe
Camargo, concedendo-lhe o título de
doutora honoris causa. O que há de estranho nesse gesto não é tanto o fato de
se estar reverenciando uma personalidade do show business. O aspecto inusitado dessa ação entre amigos se prende
à pretensão de autoridade cultural dos
dirigentes da empresa educacional, cujos anúncios de página inteira na imprensa não veiculam importantes feitos
ou descobertas em matéria científica.
Tal episódio se encaixaria à perfeição ao
que Schopenhauer chamava o "cômico
pedante", quando se realiza uma ação
que não está abrangida em seu conceito.
A notável expansão dos investimentos privados no ensino superior brasileiro, nos últimos 15 anos, o estardalhaço com que seus acionistas promovem
eventos sob sua chancela, sem falar no
fabuloso faturamento, terá decerto de
suscitar reflexão a respeito de seu ínfimo apetite por pesquisa ou por projetos
de fôlego nas áreas pouco rentáveis do
ensino superior. A prioridade quase exclusiva dos novos midas do saber "delivery" são os cursos e carreiras que prometem perspectivas de profissionalização imediata.
Por generosas que tenham sido as facilidades governamentais dispensadas
pela política do ensino superior na gestão FHC, nenhuma universidade particular nativa é capaz de se ombrear às
prestigiosas universidades norte-americanas sob controle privado. Falta-lhes
um projeto consistente de política científica e acadêmica, programas ambiciosos de pesquisa e um interesse empenhado pela aquisição e manejo de laboratórios, equipamentos e acervos.
Existe, pois, essa escancarada demissão, tanto por parte dos empresários do
ensino superior, como dos dirigentes
das fundações culturais subsidiadas por
grupos financeiros e industriais, do papel de protagonistas na área cultural.
Essas últimas preferem assumir uma
política de eventos com ampla repercussão na mídia, ou então adotar um
vezo preservacionista, em vez de bancar
os riscos de intelectuais e artistas na ativa. Tal postura conservadora não tem
nada a ver com a atitude de comprometimento de suas homólogas dos EUA.
Não é nada edificante a história do
mecenato privado no país. Aos experimentos daqueles protetores das artes
que exerciam seus pendores pelo condão das verbas públicas, prática que está
longe de se ter esvaído, seguem-se hoje
os bem comportados e apologéticos
programas mantidos com recursos garantidos pela renúncia fiscal.
Apesar de ter sido duramente castigado durante os oitos anos de FHC, o sistema nacional público de ensino superior sobreviveu e continua sendo o núcleo duro da educação de ponta em nossa sociedade. É tão-somente nesse contexto histórico mais amplo que devemos encarar os impactos perversos da
reforma previdenciária nas condições
de produção intelectual e científica.
Gostaria de me ater, de um lado, às consequências dessa iminente precarização
da atividade cultural num país em que a
sustentação material desse trabalho
nunca logrou se desprender de recursos
governamentais e, de outro, aos prováveis efeitos deletérios que o novo status
funcional e a falta de perspectivas terão
de imediato no tocante à atratividade e à
viabilidade de uma carreira intelectual.
Podemos nos orgulhar de uma imprensa arrojada; não obstante muito da
seiva e da força inovadora que azeitam
as empreitadas da mídia dependem decisivamente de uma prática de investigação ousada na universidade.
O sistema nacional público de ensino superior continua sendo o núcleo duro da educação de ponta em nossa sociedade
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O esvaziamento da universidade pública, com aviltamento dos salários, desapreço pelo trabalho acadêmico e perda da estabilidade funcional, a necessidade de distribuir tempo e energia entre
dois ou três empregos docentes, a campanha antiintelectual vocalizada pelos
arautos ressentidos da modernidade
neoliberal, a progressiva desnacionalização do controle acionário e intelectual
da atividade editorial, eis algumas das
feições a que estaremos condenados.
A reforma da Previdência atinge o coração dos nutrientes institucionais de
que se alimenta a reprodução social de
sucessivas gerações de cientistas, intelectuais e artistas, ao romper o contrato
firmado com esses quadros especializados, ora tachados como elites privilegiadas de classe média. A extinção da aposentadoria integral, o cálculo dos proventos pela média ponderada dos salários de uma carreira dependente de provas de mérito, a eliminação de regras de
proporcionalidade pelos anos de trabalho já cumpridos, em suma, a extinção
dos atrativos compensatórios para uma
carreira sem ganhos materiais elevados
será danosa para a vida cultural e desalentadora para os futuros ingressantes.
Dois caminhos, igualmente nefastos,
poderão ocorrer: o trabalho intelectual
se tornará reserva de mercado, restrita
aos herdeiros de famílias abonadas, um
abominável retrocesso elitista, ou então
os praticantes de tais atividades ficarão
a reboque das metas e conteúdos impostos pelo mecenato privado.
Manifesto-me favorável ao pagamento de uma contribuição pelos aposentados e à mudança dos limites de idade
para aposentadoria, mas conclamo os
colegas a rechaçarem todas as propostas
conducentes à ruptura das condições
institucionais capazes de garantir o "lazer estudioso", em nome da manutenção de um regime especial de trabalho
para a atividade universitária nas entidades públicas. Estendo tais reivindicações às demais carreiras de Estado, em
especial às do Judiciário.
A teia de significações detratoras que
vem minando a imagem pública dos
aposentados no serviço público, designados miseravelmente como inativos, a
tal ponto que eles mesmos já começam
a usar contra si tal disparate, sinaliza o
veio das transações econômicas e políticas mobilizadas pelos futuros beneficiários dessa concordata previdenciária,
alardeada como tábua de salvação para
o mercado, o governo, a função pública,
a justiça social, mas vivida por cada um
de nós como um salve-se-quem-puder.
Aliás, quando os ideólogos da ordem
querem infundir sutilezas ao dialeto de
serviço, a emenda costuma sair pior do
que a lição decorada. Basta atentar à
desfaçatez com que se referem aos direitos dos funcionários públicos, como se
fossem privilégios, talvez na expectativa
de que a repulsiva peroração contra tais
prerrogativas possa abafar os interesses
dos grupos efetivos de privilegiados.
Chega de eufemismos, de tecnicalidades, de palavras de ordem sopradas pelos prepostos do poder econômico.
Sergio Miceli é professor titular de sociologia na USP e autor, entre outras obras, de "Nacional
Estrangeiro - História social e cultural do modernismo artístico em São Paulo" (Cia. das Letras, 2003).
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