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A nova divisão internacional do saber
Temos que considerar a
dupla concentração, no
saber e na economia, ao
pensarmos a entrada
na era globalizante
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ELOI FERNÁNDEZ Y FERNÁNDEZ
Seguramente, com a chamada Revolução Técnico-Científica enformada especialmente nos EUA durante a 2ª
Guerra Mundial, engendraram-se as
diversas possibilidades para a sociedade capitalista. Daí decorrem diretamente o tão decantado complexo militar-industrial e a prática de dedicar 3%
do PIB para o orçamento de pesquisa e
desenvolvimento.
Esse modelo consolidado tornou-se o
paradigma exportado para os demais
países, desenvolvidos ou não.
A característica essencial desse protótipo internacionalizado é a idéia de garantia de futuro por meio de um patamar em torno daqueles mesmos 3% do
PIB para o financiamento das pesquisas tecnocientíficas, supondo que daí
decorra, por encadeamento natural, o
desenvolvimento industrial.
Evidentemente, é desejável que o Brasil amplie seus investimentos. Entretanto, isso só não basta, não se trata de
um problema meramente de capital.
A situação é muito mais complexa e
solicita a adição de outros parâmetros.
Novas regras e horizontes instalaram-se, forjando a "big science" no
pós-guerra e uma renovação nos processos industriais, permitindo a cunhagem do termo "pós-industrial" para
representar tal inovação naquela sociedade e naqueles tempos.
Foi assim que se moldou o caráter sistêmico entre ciência e indústria, consolidou-se o planejamento cientificizado
por intermédio das ações estratégicas
na construção de fatos portadores de
futuro. Portadores, sim, mas de um determinado futuro escolhido, selecionado entre os diversos amanhãs possíveis.
Mas, de todas as iniciativas, a que hoje mais ganha realce é a que, por decorrência daquele formato organizacional,
estabeleceu o consórcio mais efetivo
entre atividades científicas e industriais, propiciando a emergência e o
poder das empresas transnacionais,
com notável base tecnocientífica, como
agentes definidores das inovações tecnológicas e sociais dos tempos globalizados.
A partir desse quadro dá-se a fricção
de duas lógicas simultâneas, não excludentes, complementares e com as quais
há que saber conviver e transitar para
construir as alternativas de inserção no
futuro. Trata-se da singularidade dos
tempos atuais dada pela presença de
empresas e Estados Nacionais, uma
configuração que tenta alguns ao maniqueísmo de ver oposição de contrários onde há um processo de interação.
Hoje, dois terços do comércio mundial se devem às empresas de base multinacional; somente o terço restante é
disputado pelas empresas de base doméstica. São empresas transnacionais,
cujo sucesso financeiro é diretamente
dependente de sua capacidade tecnológica instalada e de seu esforço em promover inovações sociotécnicas, tudo
isso muito bem traduzido em vantagens competitivas.
Assim, cresce o poder das empresas
em comparação com os Estados Nacionais. O valor de nosso PIB é menor do
que a soma do movimento total de vendas do grupo das seis maiores empresas
transnacionais; ou, considerando a nova métrica da globalização, poder-se-ia
dizer, em arbitrárias unidades "GM",
que o "gigante" Brasil tem a altura de
quatro GMs.
Em qualquer prognóstico de integração ativa, comprometida com o desenvolvimento local dentro do enredamento global, há
que cuidar dos interesses e da autonomia de decisões
dos países do Sul
contra a dependência agressiva,
inclusive pelas formas mais sutis e renovadas da dependência tecnológica.
Nesse caso encontram-se aqueles países que, sem o necessário volume sociopolítico nem massa crítica econômica, certamente serão tragados pela avalanche globalizante, submetidos às economias mais fortes. Encontrar-se-ão
ante uma dependência tecnológica que
pode implicar em dependência política.
Mas tal não é o caso brasileiro, cujo
gigantismo possui suficientes capacidades e potencialidades industriais,
tecnocientíficas e psicossociais que o
tornam parceiro respeitável em qualquer mesa do poder global.
Assim, temos que considerar essa dupla concentração -no saber e na economia- ao pensarmos nossa entrada
na era globalizante, nesse fenômeno
que nos desenha fronteiras permeáveis
nos planos econômico e cultural, construindo um outro perfil de demandas
internas.
A pretensão iluminista de uma ciência pública se obscurece ante as técnicas privadas. O conhecimento tecnocientífico necessário para promover o
desenvolvimento encontra-se seletivamente distribuído em alguns poucos
bolsões setorizados, em algumas empresas de base multinacional e em alguns países. Há concentração discriminadora do saber, centralizada em alguns poucos glóbulos.
Nesse contexto, os países de economia emergente necessitam da construção de suas próprias alternativas. Correm o risco de se submeterem a um
neocolonialismo, centrado sobre o poder de saber, dos proprietários dos processos do conhecimento tecnocientífico. Instala-se uma divisão internacional do saber, uma fratura na "ciência
globalizada", destronada pela "ciência
globulizada".
Integrar nossa nação nesse jogo internacional impõe também a mudança do
cenário de desajustes internos. Se, de
um lado, vivemos o requinte de reproduzirmos o consumo sofisticado das
sociedades afluentes, por outro dependemos "terceiromundistamente" dessas mesmas
sociedades.
Diariamente navegamos na Internet e simultaneamente trafegamos
por "viadutos residenciais" favelizados. Esse, o mais duro retrato da realidade de uma dependência tecnológica
que se associa a uma dependência cultural e à subordinação dos hábitos de
consumo.
Esse conjunto de preocupações nos
obriga a uma nova operação nas interfaces weberianas do político e do cientista, afinadas com a realidade do país
em seus desajustes internos e dependências externas.
Há que encontrar saídas, inclusive insistindo no aumento dos investimentos
setorizados, mas sem a ilusão de que
este seja uma condição suficiente.
Há que estabelecer prioridades e diretrizes alinhadas com a função social
dos investimentos públicos, propiciando maior proximidade de cientistas e
técnicos com o eixo de desenvolvimento. Investimentos inteligentemente direcionados para produzirem fatos portadores de futuro, um futuro diferente,
que consiga romper as bolhas globulares de poder, de um poder concentrador de saber.
Eloi Fernández y Fernández, 48, é secretário de Ciência
e Tecnologia do Estado do Rio de Janeiro.
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