São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Infância perdida
BENEDITA DA SILVA
Quanto mais novas as crianças ingressam no trabalho doméstico, menores são as chances de terminarem o ensino fundamental e médio. Apenas 3% desses pequenos trabalhadores, com idade entre 5 e 11 anos, conseguem chegar até o ensino médio. Uma das explicações para essa estatística pode ser encontrada na carga de trabalho, de mais de 40 horas semanais para mais da metade dessas crianças. A remuneração, por outro lado, é das mais baixas, chegando a menos de um salário mínimo pago a cerca de 64% desses pequenos trabalhadores. Enganam-se os que pensam que esse flagelo de nossas crianças e adolescentes ocorre somente nas regiões mais pobres do Brasil. De norte a sul, de leste a oeste, podemos constatar o trabalho doméstico feito por eles. Para ter uma idéia dessa disseminação, a região Sudeste, a mais rica do país, é responsável pelo emprego de cerca de 31% do total desses pequenos trabalhadores e, entre as maiores taxas proporcionalmente à população, está a do Distrito Federal. Além desse triste quadro, é preciso somar à perda da infância e dos estudos a parte mais perversa do trabalho infantil doméstico: o abuso sexual, cometido principalmente contra as meninas -muitas vezes, com extrema carência afetiva, elas acabam desenvolvendo uma distorcida afetividade em relação aos que praticam esses abusos. Muitos casos relatados aos coordenadores do Peti deixaram de ser apurados -e, consequentemente, não houve nenhuma punição- devido à cultura do silêncio que prevalece entre essas pessoas por conta de um sentimento confuso, desenvolvido no convívio diário do trabalho doméstico. É preciso também desmistificar a percepção, que muitas famílias têm, de que o emprego doméstico de menores é uma alternativa ao abandono, ao caminho das ruas e da marginalidade. Essa falsa idéia é sempre apresentada como uma solução, mas, na verdade, significa um outro problema, pois retira dessas crianças o direito à infância, à educação, à cidadania, à dignidade, enfim, a todos os valores e virtudes necessários à boa formação de qualquer ser humano. O trabalho doméstico infantil só colabora para aumentar o número de excluídos de nossa sociedade. Há outro falso argumento, por parte dos que mantêm crianças como empregados domésticos, que precisa ser derrubado. Esses afirmam que os menores têm acesso à escola, comem à mesa como membros da família e têm um teto sob o qual morar, mas os detalhes são omitidos. A escola só é frequentada após a realização das tarefas domésticas; as refeições são feitas depois que a família é servida; e o teto geralmente é um aposento improvisado nos fundos da casa. Temos exata noção do peso desse trabalho e não mediremos esforços para combater essa situação. Ainda muito cedo, cuidei de crianças maiores do que eu, com uma alimentação bem melhor que a minha. Tinha que dar comida sem poder comer direito e tinha que tomar conta dos brinquedos sem ter o direito de também brincar. Já se passaram mais de 50 anos e constato, com tristeza, que essa situação não mudou. Vejo-me nessas crianças e, com isso, só reforço a minha convicção de que temos de mudar essa realidade. O governo assumiu esse compromisso, essa dívida que não pode mais crescer. Benedita da Silva, 61, é a ministra da Assistência Social. Foi vice-governadora (1999-2002) e governadora (2002) do Estado do Rio de Janeiro. Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Caetano Lagrasta Neto: O inimigo do povo Índice |
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