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São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Infância perdida

BENEDITA DA SILVA

O trabalho infantil doméstico, tratado no âmbito do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), do Ministério da Assistência Social, requer de todos nós uma atenção especial devido ao grau de dificuldade que se tem para identificar e combater essa atividade em nosso país.
Milhares de crianças e adolescentes enfrentam uma jornada árdua de trabalho diário, que, em muitos casos, até mesmo para um adulto representa um grande sacrifício.
A redução e a eliminação desse fardo imposto a uma significativa parcela de nossos jovens passam por uma profunda conscientização de nossa sociedade, pela educação e pelo fortalecimento das famílias de origem dessas crianças, para que possam ter e dar a seus filhos um padrão de vida digno.
Nesse sentido, criamos, em julho deste ano, a Comissão Permanente de Erradicação do Trabalho Infantil Doméstico (Cetid), que já vem trabalhando em soluções para esse problema. Temos, no entanto, enormes dificuldades para chegar a essas crianças e adolescentes, por se tratar de uma atividade praticamente invisível, desenvolvida dentro dos lares, apesar de as pesquisas apontarem para um contingente de 502 mil jovens com idades de 5 cinco a 17 anos desempenhando trabalho doméstico em todo o país.


É preciso desmistificar a percepção de que o emprego doméstico de menores é uma alternativa ao abandono


Quanto mais novas as crianças ingressam no trabalho doméstico, menores são as chances de terminarem o ensino fundamental e médio. Apenas 3% desses pequenos trabalhadores, com idade entre 5 e 11 anos, conseguem chegar até o ensino médio. Uma das explicações para essa estatística pode ser encontrada na carga de trabalho, de mais de 40 horas semanais para mais da metade dessas crianças. A remuneração, por outro lado, é das mais baixas, chegando a menos de um salário mínimo pago a cerca de 64% desses pequenos trabalhadores.
Enganam-se os que pensam que esse flagelo de nossas crianças e adolescentes ocorre somente nas regiões mais pobres do Brasil. De norte a sul, de leste a oeste, podemos constatar o trabalho doméstico feito por eles. Para ter uma idéia dessa disseminação, a região Sudeste, a mais rica do país, é responsável pelo emprego de cerca de 31% do total desses pequenos trabalhadores e, entre as maiores taxas proporcionalmente à população, está a do Distrito Federal.
Além desse triste quadro, é preciso somar à perda da infância e dos estudos a parte mais perversa do trabalho infantil doméstico: o abuso sexual, cometido principalmente contra as meninas -muitas vezes, com extrema carência afetiva, elas acabam desenvolvendo uma distorcida afetividade em relação aos que praticam esses abusos. Muitos casos relatados aos coordenadores do Peti deixaram de ser apurados -e, consequentemente, não houve nenhuma punição- devido à cultura do silêncio que prevalece entre essas pessoas por conta de um sentimento confuso, desenvolvido no convívio diário do trabalho doméstico.
É preciso também desmistificar a percepção, que muitas famílias têm, de que o emprego doméstico de menores é uma alternativa ao abandono, ao caminho das ruas e da marginalidade. Essa falsa idéia é sempre apresentada como uma solução, mas, na verdade, significa um outro problema, pois retira dessas crianças o direito à infância, à educação, à cidadania, à dignidade, enfim, a todos os valores e virtudes necessários à boa formação de qualquer ser humano. O trabalho doméstico infantil só colabora para aumentar o número de excluídos de nossa sociedade.
Há outro falso argumento, por parte dos que mantêm crianças como empregados domésticos, que precisa ser derrubado. Esses afirmam que os menores têm acesso à escola, comem à mesa como membros da família e têm um teto sob o qual morar, mas os detalhes são omitidos. A escola só é frequentada após a realização das tarefas domésticas; as refeições são feitas depois que a família é servida; e o teto geralmente é um aposento improvisado nos fundos da casa.
Temos exata noção do peso desse trabalho e não mediremos esforços para combater essa situação.
Ainda muito cedo, cuidei de crianças maiores do que eu, com uma alimentação bem melhor que a minha. Tinha que dar comida sem poder comer direito e tinha que tomar conta dos brinquedos sem ter o direito de também brincar. Já se passaram mais de 50 anos e constato, com tristeza, que essa situação não mudou. Vejo-me nessas crianças e, com isso, só reforço a minha convicção de que temos de mudar essa realidade. O governo assumiu esse compromisso, essa dívida que não pode mais crescer.

Benedita da Silva, 61, é a ministra da Assistência Social. Foi vice-governadora (1999-2002) e governadora (2002) do Estado do Rio de Janeiro.


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