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A Justiça e a videoconferência
KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE
Modernizar a Justiça é usar os meios tecnológicos para a celeridade da prestação jurisdicional, e não para subtrair direitos e garantias
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"A justiça é algo essencialmente humano"
Aristóteles
RECENTE decisão do Supremo
Tribunal Federal trouxe à tona
o tema do uso da tecnologia e o
papel do juiz como garantidor dos direitos fundamentais.
Em 2002, a Associação Juízes para
a Democracia, a Associação dos Advogados de São Paulo, o Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do
Brasil), a OAB-SP, o IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), a Apesp (Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo), o
Sindiproesp (Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das
Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo) e o
Iddd (Instituto de Defesa do Direito
de Defesa) se manifestaram conjuntamente sobre o tema e apresentaram
reflexões sobre os graves problemas e
as conseqüências danosas da videoconferência para o sistema de justiça,
o que foi reconhecido, por unanimidade, pela 2ª Turma do STF, em julgamento cujo relator foi o ministro Cezar Peluso.
Evidentemente, essas instituições
desejam o aprimoramento da Justiça
com o uso de meios tecnológicos para
agilização da prestação jurisdicional,
mas, em hipótese nenhuma, a título
de sermos modernos, podemos suprimir direitos fundamentais.
É indispensável o investimento em
tecnologia nos processos criminais,
que pode ser usada de várias formas,
como a digitalização dos processos, a
certificação digital, a criação de rede
que possibilite a requisição dos presos sem delongas, a expedição de
mandados de prisão e de intimação,
um sistema de informações que permita a comunicação de dados entre o
Executivo (inquéritos policiais) e o
Judiciário, para que tenhamos agilidade e transparência das informações
e melhor acesso para as partes.
Dizem que, com a videoconferência, acabaríamos com o problema de
fugas de presos no trajeto de transporte para audiências, o que é fato raríssimo, a contar nas mãos nas últimas décadas.
Invocar o custo econômico do
transporte de presos para justificar a
adoção de medida que atenta contra
as garantias constitucionalmente asseguradas é inadmissível, pois o Estado de Direito tem o seu preço.
Modernizar a Justiça é utilizar os
meios tecnológicos para a celeridade
da prestação jurisdicional, e não para
a subtração de direitos e garantias expressos na Constituição Federal, decorrentes do regime e dos princípios
por ela adotados ou dos tratados internacionais. Nessa matéria, um dos
princípios de relevo é a garantia constitucional de ampla defesa, que inclui
a autodefesa, a qual pressupõe o direito de presença e de audiência.
Os tratados internacionais ratificados pelo Brasil determinam a apresentação do preso, em prazo razoável,
diante do juiz para ser ouvido, com as
devidas garantias. Ora, não se trata de
presença ficta, mas real. Os tratados
de ordem regional, dos quais o Brasil é
signatário, não contemplam a possibilidade da videoconferência.
As hipóteses permissivas de videoconferência, no sistema global, são de
aplicação excepcional, como se vê nas
convenções de Palermo e de Mérida, a
primeira referente ao crime organizado transnacional, e a segunda, à corrupção, notadamente de funcionários
com cargos no Legislativo, no Executivo ou no Judiciário, e sempre cercadas de garantias, observando-se o caráter de aplicação restritíssima, como
o efetivo perigo para a testemunha ou
estar em outro Estado-parte.
O fato é que assim começam as tiranias. Num dia, tiram dos mais vulneráveis, e nada dizemos porque não
conseguimos nos ver nos outros,
principalmente se são presos, negros,
mulheres ou homossexuais. Admitimos que façam "experiências" com os
direitos que são de todos porque não
nos vemos atingidos, porque não temos o sentido ético do "nós". No dia
seguinte, a experiência será outra e
mais outra, até que não nos deixam
mais falar e só então percebemos que
os outros somos nós.
O julgamento do STF faz lembrar
"Tempos Modernos", no qual Chaplin criticava a prevalência da máquina sobre o homem, a exigir que o foco
da vida fosse o humano. O STF fez a
opção. Esse julgamento deve servir de
parâmetro e reflexão a todos e, nesse
momento, principalmente aos legisladores, que até agora bem rejeitaram
as propostas, evitando danos maiores
ao sistema de justiça e à segurança.
O paradigma está posto: nada substitui a humanidade no exercício de
qualquer dos poderes do Estado.
KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE é juíza de direito da 16ª
Vara Criminal de São Paulo, membro fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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