São Paulo, segunda-feira, 18 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Leblon e o Carnegie Hall

MILÚ VILLELA

Há um abismo que divide a realidade dos jovens brasileiros. De um lado estão aqueles que tiveram a sorte de ser abrigados por um projeto social patrocinado pela iniciativa privada ou por ONGs dos mais diferentes matizes; do outro estão os que vivem à margem de qualquer assistência e aos poucos vão se integrando à marginalidade ou às atividades mambembes nos semáforos das grandes cidades.
As imagens que circularam no mundo há alguns dias, com adolescentes saqueando turistas nas praias do Rio de Janeiro, são um retrato da segunda situação. Abandonados à própria sorte, os meninos deram uma lição aos estupefatos telespectadores sobre qual é o subproduto mais evidente da exclusão. O Leblon, cartão-postal da paisagem carioca, foi tomado pela fúria de quem tem que lutar com unhas e dentes para conseguir alguns trocados a fim de manter a vida em andamento. Os meninos saqueadores mostram que sabem dar o troco. É como se dissessem: "OK, estamos na miséria, não temos futuro, ninguém olha por nós; mas estamos aqui e vamos à luta".


Temos de apostar na responsabilidade social como instrumento de mudança da realidade que nos cerca


Nem adianta colocar a polícia naquele trecho aprazível do Rio. A força repressiva só conseguirá empurrar o problema alguns metros para adiante. Tirem os meninos do Leblon e eles correrão para Ipanema; cerquem Ipanema e eles voltarão para os morros, onde provavelmente irão se integrar às forças do tráfico. Ou seja, o que eles precisam não é de polícia, é de oportunidade.
Realidade bem diferente é a vivida cotidianamente pelos adolescentes que hoje recebem a proteção de projetos de responsabilidade social em todo o país. Amparados pelo investimento de empresas e entidades do terceiro setor, muitos deles estão conseguindo superar os horizontes da pobreza e já podem traçar um novo roteiro para suas vidas.
Na mesma semana em que o episódio do Rio veio a público, um grupo de jovens da periferia de São Paulo se apresentava no Carnegie Hall ao lado do maestro Mauricio Alves e do pianista Marcelo Bratke, num concerto que mereceu destaque até mesmo no "New York Times". Eles são produto de investimento social. Eles são assistidos pelo Projeto Despertar, um programa de responsabilidade social que vem se desenvolvendo, há dez anos, no Jardim Miriam, um dos bolsões de pobreza encravados na capital paulista.
Ali, centenas de pessoas passam todos os dias por cursos profissionalizantes e realizam atividades extracurriculares, como a música. Nesse ambiente de acolhimento é que foi criado o grupo de percussão Charanga, que, pelo talento de seus integrantes, acabou realizando uma série de apresentações.
A história dos meninos do Despertar felizmente não é a única. Vem crescendo nos últimos anos o número de empresas e empresários que investem em projetos de responsabilidade social no Brasil. Já se instalou entre nós a percepção de que não podemos ficar esperando que apenas o governo resolva os dramas do nosso dia-a-dia.
Mas esse movimento tem que se expandir. Ele ainda não é suficiente para enfrentarmos os desafios presentes. Como se percebe, os meninos do Leblon ainda não foram contemplados. E, como eles, milhares de crianças tão talentosas quanto o Alex Santos, o Flávio de Oliveira, o Marcos Silva e o Paulinho Cesar, do Charanga, aguardam uma oportunidade para abrir caminhos produtivos na vida e escapar do destino da violência.
Se dermos a eles apoio, estrutura, educação formal e complementar, instrução técnica, proteção e dignidade, independentemente das políticas públicas existentes, as cenas do Leblon se tornarão, com o passar do tempo, coisa do passado. Se ficarmos de braços cruzados, aguardando uma solução do Estado, ao contrário, elas se tornarão cada vez mais vivas e presentes em nosso cotidiano.
O engajamento é imperioso no momento histórico brasileiro. Se quisermos construir uma nação cidadã ao longo das próximas décadas, se quisermos fazer o país superar seus desafios históricos, temos de partir para a ação e doar parte de nosso tempo, de nosso talento e de nossos recursos para resgatar o capital humano que vive na outra margem do rio.
Profissionais liberais, empresários, executivos, estudantes -o conjunto da sociedade civil- podem fazer a diferença e precisam pôr a mão na massa para mudar o destino de quem vive na exclusão. Temos de apostar, mais do que nunca, na responsabilidade social como instrumento de mudança da realidade que nos cerca. Os meninos do Leblon e todos aqueles que sonham com uma oportunidade para mudar a história de suas vidas agradecem a iniciativa.

Milú Villela, 58, empresária, é presidente do Faça Parte - Instituto Brasil Voluntário, do MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo) e do Instituto Itaú Cultural.


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