São Paulo, segunda-feira, 18 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A queda da "superaspirina"

MORTON SCHEINBERG

O inevitável acabou acontecendo. O laboratório farmacêutico Merck Sharp & Dohme retirou do mercado uma medicação de incontestável eficácia no tratamento da artrite e da dor, com vendas mundiais superiores a US$ 2 bilhões em 2003 -aproximadamente 10% do faturamento anual da empresa.
As evidências de que o uso contínuo do Vioxx aumenta a incidência de ataques cardíacos e derrames cerebrais tem se acumulado através dos anos, mas o Merck procurou alternativas para diminuir as evidências clínicas inicialmente levantadas por pesquisadores da renomada Cleveland Clinic, centro mundial de referência em doenças cardiovasculares, e posteriormente por outros estudos. O mais conhecido, chamado "Vigor", foi publicado na famosa revista médica "New England Journal of Medicine".
O golpe mortal surgiu a partir de um estudo, ainda não publicado, no qual procurava-se estender as suas indicações clínicas através de um possível efeito inibidor do Vioxx no aparecimento de pólipos intestinais por meio do seu uso prolongado (no caso do estudo, um mínimo de 18 meses). Uma maior incidência de complicações cardiovasculares também foi observada nesse estudo.


No caso do Vioxx houve a exposição maciça de publicidade dirigida diretamente ao consumidor


O Vioxx faz parte de um grupo de novos medicamentos com propriedades antiinflamatórias semelhantes aos dos produtos mais antigos, porém com efeitos colaterais substancialmente menores no aparelho digestivo, diminuindo a incidência principalmente de úlceras e hemorragias. Em certos casos, os efeitos colaterais digestivos dos antiinflamatórios mais antigos podem levar à morte dos pacientes por hemorragia não controlável. Foi por esse beneficio, associado a uma estratégia agressiva de marketing, principalmente nos Estados Unidos, que o produto em poucos anos tornou-se um dos principais medicamentos vendidos no mundo.
No caso do Vioxx, observou-se uma supremacia do marketing em relação à ciência, com a exposição maciça de publicidade dirigida diretamente ao consumidor. Pois vários estudos já apontavam o aumento da incidência de infartos e derrames em usuários do Vioxx. No entanto as dúvidas levantadas pelos médicos eram sempre respondidas com explicações plausíveis. E logo as dúvidas cessaram.
Embora no Brasil, com a criação da Anvisa, tenhamos uma agência reguladora do licenciamento de medicamentos bem mais estruturada, muito se discute ainda sobre a legislação que regula a publicidade de medicamentos em jornais, em revistas de grande circulação e na televisão. Não há controle também do material divulgado para os médicos, o que a contrapartida norte-americana, o FDA, faz constantemente.
Cabe aqui, no entanto, uma ressalva: a instituição norte-americana já sabia havia alguns anos dos efeitos do Vioxx no sistema cardiovascular. Tanto que pediu para a empresa incluir alertas na bula do medicamento. Mas, no Brasil, quem lê bula de remédio? Cabe essa responsabilidade ao médico, que recebe as informações do Merck -que durante tanto tempo refutou as alegações de que o Vioxx elevava o risco de problemas cardiovasculares. Como quebrar esse ciclo?
Outros produtos da mesma classe de antiinflamatórios a que pertencem o Vioxx (os inibidores da enzima COX-2) não estão associados a esse tipo de problema. Porém uma vigilância mais estrita do uso desses produtos terá de ser feita pelas agências reguladoras. O FDA já assinalou que o fará. Outro fator importante é disponibilizar esses medicamentos só com prescrição médica.
Qual a possibilidade de que os efeitos adversos do Vioxx para o lado cardiovascular venham a ser observados nos outros produtos dessa classe de medicamentos? Em princípio, cada inibidor de COX-2 possui uma estrutura química diferente e não deveríamos esperar o mesmo perfil de efeitos adversos. Em estudos com concorrentes, em que foi avaliada a ação na prevenção de câncer intestinal com mais de 4.000 pacientes, não houve incidência maior de infartos ou derrames cerebrais.
Também conhecidos como "superaspirinas", a nova classe de antiinflamatórios, os inibidores da enzima COX-2, deverá ter um uso mais seletivo pela classe médica, fato esse desejável não só pelos motivos acima expostos, mas também por terem um custo individual substancialmente maior que os antiinflamatórios tradicionais.
Para aqueles que fizeram uso do Vioxx, não há motivos para pânico. Existem diversas alternativas no mercado com igual eficácia.

Morton Scheinberg, 59, médico clínico, doutor pela Universidade de Boston (EUA) e professor livre-docente da USP, é pesquisador em reumatologia e imunologia do Hospital Israelita Albert Einstein e presidente no Brasil do Colégio Americano de Clínica Medica.


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