|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
A vida privada de pessoas públicas deve ser objeto de debate político?
SIM
Interesses privados e bem comum
LEONARDO AVRITZER
A MODERNIDADE política se desenvolveu a partir da idéia de
uma forte separação entre o
público e o privado. Essa separação,
partilhada tanto por liberais quanto
por republicanos, é justificada de diferentes maneiras.
Para os liberais, o elemento central
da política deve ser a defesa da inviolabilidade do privado baseada na tolerância à pluralidade. Para os liberais,
ambas as dimensões não estão relacionadas à política e, nesse sentido,
não devem aparecer na esfera pública. Para os republicanos, o elemento
central da política é o público estritamente concebido, e nada do que é privado deve influenciá-lo. Assim, nada
mais lógico do que uma estrita separação entre as duas esferas.
No entanto, a grande mudança trazida pela modernidade tardia é um
processo que denominamos "societalização do público". Ele torna ficção a
idéia de que a política trabalha só com
as questões do bem comum, uma vez
que ela se transforma cada vez mais
em uma interseção entre os interesses privados e os valores plurais que
buscam uma expressão pública.
Por outro lado, a forte intervenção
do Estado no que é social por meio de
políticas que expressam concepções
morais, seja na área da educação, seja
na área do bem-estar social como um
todo, torna muito mais tênue as fronteiras entre o público e o privado na
política.
É nesse novo contexto que aparece
a questão: o que a política deve processar ou publicizar sobre a vida privada dos indivíduos? A resposta a essa
questão deve separar duas dimensões
do privado. Em primeiro lugar, aquilo
que denominamos interesses econômicos privados e, em segundo lugar,
aquilo que chamamos de íntimo e que
inclui um conjunto de escolhas valorativas que os indivíduos realizam
privadamente. Como entender a relação entre essas escolhas e a política?
No que diz respeito aos interesses
privados, não resta a menor dúvida de
que o seu conhecimento desempenha
papel positivo no sistema político.
Entender as relações privadas estabelecidas pelos políticos, quem os financia e quais são os interesses econômicos que eles representam constitui um dos desafios da política contemporânea. A revelação desses interesses qualifica a esfera pública e
rompe uma suposta inocência, de
acordo com a qual cada indivíduo representaria apenas o bem comum e
tudo o que a política envolve são diferentes elaborações acerca do que é o
bem comum. Nada mais falso.
O papel da esfera pública é revelar
quais são os interesses privados por
trás da defesa do bem comum. Nesse
sentido, vale a pena ressaltar a importância da legalização dos lobbies no
Brasil. O sistema político brasileiro
opera a partir do suposto de que ninguém faz lobby, já que ninguém admite que o faz e os políticos não admitem que mantêm contatos com lobistas. Não existe a menor dúvida de que
a pior maneira de realizar o lobby é
realizá-lo privada e/ou secretamente.
Quando passamos da esfera pública
para a esfera íntima, a questão sobre
quais são os limites da política adquire uma tonalidade diferente.
O que separa a esfera privada da íntima é a percepção de que há uma dimensão da esfera privada que não diz
respeito a interesses materiais, e sim
a valores e modos de vida.
Essa esfera que chamamos de íntima pode eventualmente influenciar o
sistema político. Por exemplo, discussões sobre o aborto ou sobre os direitos de minorias culturais podem ser
influenciadas pelas concepções religiosas de um político ou pela maneira
como ele abordou tais questões na
sua própria família.
O caso da gravidez não interrompida da filha adolescente de Sarah Palin
é um bom exemplo. Sua revelação diminuiu o apoio do candidato republicano à Presidência entre o eleitorado
feminino. Nesse sentido, a revelação
da intimidade de um candidato pode
esclarecer o eleitorado.
De todo modo, o limite da publicização de fatos da vida privada dos indivíduos deve existir. A publicização
deve excluir casos nos quais reforça
preconceitos e ataca a pluralidade dos
modos de vida, que deve ser o objetivo
maior da política democrática.
LEONARDO AVRITZER, mestre em ciência política e doutor em sociologia, é professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). É autor
de "A Moralidade da Democracia" (Perspectiva/UFMG),
entre outras obras.
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Luiz Bernardo Leite Araujo: O jogo político não é reino do vale-tudo Próximo Texto: Painel do leitor Índice
|