São Paulo, sábado, 18 de outubro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

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A vida privada de pessoas públicas deve ser objeto de debate político?

SIM

Interesses privados e bem comum

LEONARDO AVRITZER

A MODERNIDADE política se desenvolveu a partir da idéia de uma forte separação entre o público e o privado. Essa separação, partilhada tanto por liberais quanto por republicanos, é justificada de diferentes maneiras.
Para os liberais, o elemento central da política deve ser a defesa da inviolabilidade do privado baseada na tolerância à pluralidade. Para os liberais, ambas as dimensões não estão relacionadas à política e, nesse sentido, não devem aparecer na esfera pública. Para os republicanos, o elemento central da política é o público estritamente concebido, e nada do que é privado deve influenciá-lo. Assim, nada mais lógico do que uma estrita separação entre as duas esferas.
No entanto, a grande mudança trazida pela modernidade tardia é um processo que denominamos "societalização do público". Ele torna ficção a idéia de que a política trabalha só com as questões do bem comum, uma vez que ela se transforma cada vez mais em uma interseção entre os interesses privados e os valores plurais que buscam uma expressão pública.
Por outro lado, a forte intervenção do Estado no que é social por meio de políticas que expressam concepções morais, seja na área da educação, seja na área do bem-estar social como um todo, torna muito mais tênue as fronteiras entre o público e o privado na política.
É nesse novo contexto que aparece a questão: o que a política deve processar ou publicizar sobre a vida privada dos indivíduos? A resposta a essa questão deve separar duas dimensões do privado. Em primeiro lugar, aquilo que denominamos interesses econômicos privados e, em segundo lugar, aquilo que chamamos de íntimo e que inclui um conjunto de escolhas valorativas que os indivíduos realizam privadamente. Como entender a relação entre essas escolhas e a política?
No que diz respeito aos interesses privados, não resta a menor dúvida de que o seu conhecimento desempenha papel positivo no sistema político.
Entender as relações privadas estabelecidas pelos políticos, quem os financia e quais são os interesses econômicos que eles representam constitui um dos desafios da política contemporânea. A revelação desses interesses qualifica a esfera pública e rompe uma suposta inocência, de acordo com a qual cada indivíduo representaria apenas o bem comum e tudo o que a política envolve são diferentes elaborações acerca do que é o bem comum. Nada mais falso.
O papel da esfera pública é revelar quais são os interesses privados por trás da defesa do bem comum. Nesse sentido, vale a pena ressaltar a importância da legalização dos lobbies no Brasil. O sistema político brasileiro opera a partir do suposto de que ninguém faz lobby, já que ninguém admite que o faz e os políticos não admitem que mantêm contatos com lobistas. Não existe a menor dúvida de que a pior maneira de realizar o lobby é realizá-lo privada e/ou secretamente.
Quando passamos da esfera pública para a esfera íntima, a questão sobre quais são os limites da política adquire uma tonalidade diferente.
O que separa a esfera privada da íntima é a percepção de que há uma dimensão da esfera privada que não diz respeito a interesses materiais, e sim a valores e modos de vida.
Essa esfera que chamamos de íntima pode eventualmente influenciar o sistema político. Por exemplo, discussões sobre o aborto ou sobre os direitos de minorias culturais podem ser influenciadas pelas concepções religiosas de um político ou pela maneira como ele abordou tais questões na sua própria família.
O caso da gravidez não interrompida da filha adolescente de Sarah Palin é um bom exemplo. Sua revelação diminuiu o apoio do candidato republicano à Presidência entre o eleitorado feminino. Nesse sentido, a revelação da intimidade de um candidato pode esclarecer o eleitorado.
De todo modo, o limite da publicização de fatos da vida privada dos indivíduos deve existir. A publicização deve excluir casos nos quais reforça preconceitos e ataca a pluralidade dos modos de vida, que deve ser o objetivo maior da política democrática.


LEONARDO AVRITZER, mestre em ciência política e doutor em sociologia, é professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). É autor de "A Moralidade da Democracia" (Perspectiva/UFMG), entre outras obras.


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