São Paulo, domingo, 18 de outubro de 1998

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IDEALISMO PAPAL

João Paulo 2º marcou a data de 20 anos de seu pontificado com uma síntese intelectual daquilo que está na base de sua pregação religiosa. A encíclica "Fé e Razão" procura revigorar o catolicismo em um terreno no qual ele perde espaço há séculos, o das idéias, a partir de uma crítica ao moderno pensamento ocidental.
O papa afirma que a igreja não canoniza uma filosofia nem propõe uma própria. Não quer eliminar o diálogo, mas encorajar o pensamento e identificar o que pode levar à verdade até em teorias que separam fé e razão. Mas sublinha que deve reagir com vigor a teses que ameacem a reta compreensão do que é revelado pela fé e contradigam a doutrina cristã.
O erro estaria em abandonar a busca sobre a verdade de Deus, a origem e a finalidade da vida. A legítima pluralidade de filosofias não deve ceder ao relativismo, à idéia de que todas as posições são equivalentes e de que estão mortas as grandes certezas.
Em seu enérgico papado, João Paulo 2º sempre fez questão de explicitar o que considera o cerne de sua religião -daquilo que não é possível abrir mão sem que se perca a identidade da crença e o seu sentido.
O papa tem ressaltado que a igreja não é uma associação de livres-pensadores ou de indivíduos dispostos a compor uma crença segundo seu arbítrio, na qual se deixa de lado o que estorva desejos individualistas e materialistas. Tal aliás é o caráter de certa religiosidade, mundana e mercantil não só por esperar do sobrenatural recompensas materiais, mas por substituir vínculos transcendentais pela relação imediata de troca com a divindade. Esse traço curiosamente é comum em fundamentalismos, em quem faz da leitura e da exegese da Bíblia a fonte única da verdade, o que a encíclica critica com energia.
João Paulo 2º tem condenado quem coloca o prazer antes do compromisso, atitude que redunda em intervenção contra a natureza criada por Deus: o uso de anticoncepcionais, por exemplo, e o sexo não consagrado pela igreja. Em gesto político e religioso, combateu o catolicismo esquerdista da Teologia da Libertação, para ele ameaça à unidade da igreja e ao seu sentido mais espiritual.
Mas, embora o negue, o papa bate-se também contra a maré cultural dos últimos 400 anos, que desembocou na modernidade. Daí surgiu a crítica livre e o desafio permanente à autoridade -e enfim o relativismo criticado pela encíclica. O apelo papal, porém, como qualquer doutrina, defrontará com essa moenda incessante de conceitos, que não cederá ao argumento de autoridade da fé.
Há algo de mau no relativismo e no desmonte do conceito de objetividade. A falta de critério para o juízo moral pode levar à barbárie. Mas a filosofia por si só jamais foi um dique contra o mal, e sistemas sobre o sentido final da história ou sobre a verdade do ser levaram a tiranias assassinas. Uma alternativa menos ambiciosa para a busca de sentido pregada pelo papa, laica e sugerida por filósofos contemporâneos, estaria na balbúrdia conflituosa da vida dos homens em sociedade, na livre controvérsia a respeito de seu destino e na tentativa de educação do sentimento na direção da tolerância e da solidariedade. O reino do papa, porém, não é deste mundo. João Paulo 2º quer fazer com que seus fiéis reflitam sobre um modo de conciliar a intrínseca capacidade corrosiva da razão com a férrea natureza da fé.



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