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IDEALISMO PAPAL
João Paulo 2º marcou a data de 20
anos de seu pontificado com uma
síntese intelectual daquilo que está
na base de sua pregação religiosa. A
encíclica "Fé e Razão" procura revigorar o catolicismo em um terreno
no qual ele perde espaço há séculos,
o das idéias, a partir de uma crítica ao
moderno pensamento ocidental.
O papa afirma que a igreja não canoniza uma filosofia nem propõe
uma própria. Não quer eliminar o
diálogo, mas encorajar o pensamento e identificar o que pode levar à verdade até em teorias que separam fé e
razão. Mas sublinha que deve reagir
com vigor a teses que ameacem a reta
compreensão do que é revelado pela
fé e contradigam a doutrina cristã.
O erro estaria em abandonar a busca sobre a verdade de Deus, a origem
e a finalidade da vida. A legítima pluralidade de filosofias não deve ceder
ao relativismo, à idéia de que todas as
posições são equivalentes e de que
estão mortas as grandes certezas.
Em seu enérgico papado, João Paulo 2º sempre fez questão de explicitar
o que considera o cerne de sua religião -daquilo que não é possível
abrir mão sem que se perca a identidade da crença e o seu sentido.
O papa tem ressaltado que a igreja
não é uma associação de livres-pensadores ou de indivíduos dispostos a
compor uma crença segundo seu arbítrio, na qual se deixa de lado o que
estorva desejos individualistas e materialistas. Tal aliás é o caráter de certa religiosidade, mundana e mercantil não só por esperar do sobrenatural recompensas materiais, mas por
substituir vínculos transcendentais
pela relação imediata de troca com a
divindade. Esse traço curiosamente é
comum em fundamentalismos, em
quem faz da leitura e da exegese da
Bíblia a fonte única da verdade, o que
a encíclica critica com energia.
João Paulo 2º tem condenado quem
coloca o prazer antes do compromisso, atitude que redunda em intervenção contra a natureza criada por
Deus: o uso de anticoncepcionais,
por exemplo, e o sexo não consagrado pela igreja. Em gesto político e religioso, combateu o catolicismo esquerdista da Teologia da Libertação,
para ele ameaça à unidade da igreja e
ao seu sentido mais espiritual.
Mas, embora o negue, o papa bate-se também contra a maré cultural
dos últimos 400 anos, que desembocou na modernidade. Daí surgiu a
crítica livre e o desafio permanente à
autoridade -e enfim o relativismo
criticado pela encíclica. O apelo papal, porém, como qualquer doutrina,
defrontará com essa moenda incessante de conceitos, que não cederá ao
argumento de autoridade da fé.
Há algo de mau no relativismo e no
desmonte do conceito de objetividade. A falta de critério para o juízo moral pode levar à barbárie. Mas a filosofia por si só jamais foi um dique
contra o mal, e sistemas sobre o sentido final da história ou sobre a verdade do ser levaram a tiranias assassinas. Uma alternativa menos ambiciosa para a busca de sentido pregada pelo papa, laica e sugerida por filósofos contemporâneos, estaria na
balbúrdia conflituosa da vida dos homens em sociedade, na livre controvérsia a respeito de seu destino e na
tentativa de educação do sentimento
na direção da tolerância e da solidariedade. O reino do papa, porém, não
é deste mundo. João Paulo 2º quer
fazer com que seus fiéis reflitam sobre um modo de conciliar a intrínseca capacidade corrosiva da razão
com a férrea natureza da fé.
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