São Paulo, sexta, 18 de dezembro de 1998

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Os foguetes em Bagdá

JOSÉ SARNEY

Não sou xenófobo nem pertenço ao grupo dos que escolheram os Estados Unidos para alvo de suas inconformações. Minha preocupação no governo foi evitar que os naturais conflitos de interesse entre Brasil e EUA fossem utilizados -como era costume- para uma retórica e um sentimento antiamericanos. O histerismo desapareceu de nossas relações de governo. Absorvemos até mesmo grosserias diplomáticas, como a indelicadeza de Reagan no discurso com que me recebeu na Casa Branca, com censuras veladas às nossas posições, e na escolha da data nacional do Brasil, 7 de Setembro, para a aplicação de sanções comerciais ao nosso país. Reagimos sem paixão.
Considero-me um razoável conhecedor da história americana, sobre a qual publiquei alguns estudos e reflexões. Tenho grandes amigos nos Estados Unidos, nas áreas política, cultural e acadêmica. Entre os formuladores das idéias fundamentais da transformação do mundo estão Jefferson, Hamilton, Wilson. Mesmo com o arroubo da mocidade, Kennedy demonstrou como se pode utilizar o idealismo dos jovens para renovar velhas utopias, como o "sonho americano".
É um orgulho para nós que tenha nascido na América o país das idéias da liberdade, dos direitos humanos e de uma humanidade unificada pela melhoria de qualidade de vida das pessoas.
Devemos aos Estados Unidos a salvação da humanidade, livrando-a de dois flagelos: a demoníaca ação do Terceiro Reich, o primeiro Estado que utilizou a tecnologia para objetivos fanáticos, e o stalinismo, com a ideologia sectária, uma religião inquisitorial que nos levou à beira do conflito nuclear.
Por tudo isso, é uma traição à história dos EUA o ataque ao Iraque. É difícil acreditar nas motivações alegadas. São frágeis e inverossímeis. Saddam é execrável. Tirano sem entranhas. Massacrou o povo curdo e é uma ameaça ao próprio Iraque. Mas é inconcebível que uma grande potência, que já utilizou com êxito seus instrumentos de pressão para contê-lo, possa fazer o que estamos vendo. O povo do Iraque já sofre por Saddam, sofre pela fome, sofre pelo embargo, sofre pela desesperança. Por que aumentar suas desgraças matando civis, destruindo (sic) o Ministério da Cultura?
Da Inglaterra não falemos nada. Esse Blair me parece menos um líder e mais um político esperto que pensa enganar a todos: à direita, imitando-a, à esquerda, incensando-a com fogos de artifício. Onde está a Grã-Bretanha de Disraeli, Pitt, Churchill? Suas justificações são de terceira via.
Onde estão os organismos internacionais, o modelo de proteção à paz montado como nova política mundial? Onde estão as providências contra a Bósnia, as armas atômicas da África do Sul, da Coréia do Norte, do Irã, de Israel?
Ainda mais, para desgraça da visão sobre os Estados Unidos, pesa a suspeita de um gesto pessoal de Clinton, para fugir do caso Lewinsky. Nunca um relacionamento frívolo (!) teve tantas consequências. Os republicanos, tendo a opinião pública contra, parecem maníacos sexuais. E, agora, Clinton os acompanha na insensatez. Substitui o erotismo pela execrável cultura da guerra.
Queira Deus que a opinião pública não compreenda assim, porque senão os foguetes Tomahawk lançados contra Bagdá podem atingir o prestígio, a imagem e o coração do presidente dos Estados Unidos, hoje, no mínimo, um homem sob suspeita.
Eu abomino a violência.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.



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