|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Os foguetes em Bagdá
JOSÉ SARNEY
Não sou xenófobo nem pertenço ao
grupo dos que escolheram os Estados
Unidos para alvo de suas inconformações. Minha preocupação no governo
foi evitar que os naturais conflitos de
interesse entre Brasil e EUA fossem
utilizados -como era costume- para uma retórica e um sentimento antiamericanos. O histerismo desapareceu de nossas relações de governo.
Absorvemos até mesmo grosserias diplomáticas, como a indelicadeza de
Reagan no discurso com que me recebeu na Casa Branca, com censuras veladas às nossas posições, e na escolha
da data nacional do Brasil, 7 de Setembro, para a aplicação de sanções
comerciais ao nosso país. Reagimos
sem paixão.
Considero-me um razoável conhecedor da história americana, sobre a
qual publiquei alguns estudos e reflexões. Tenho grandes amigos nos Estados Unidos, nas áreas política, cultural e acadêmica. Entre os formuladores das idéias fundamentais da transformação do mundo estão Jefferson,
Hamilton, Wilson. Mesmo com o arroubo da mocidade, Kennedy demonstrou como se pode utilizar o
idealismo dos jovens para renovar velhas utopias, como o "sonho americano".
É um orgulho para nós que tenha
nascido na América o país das idéias
da liberdade, dos direitos humanos e
de uma humanidade unificada pela
melhoria de qualidade de vida das
pessoas.
Devemos aos Estados Unidos a salvação da humanidade, livrando-a de
dois flagelos: a demoníaca ação do
Terceiro Reich, o primeiro Estado que
utilizou a tecnologia para objetivos fanáticos, e o stalinismo, com a ideologia sectária, uma religião inquisitorial
que nos levou à beira do conflito nuclear.
Por tudo isso, é uma traição à história dos EUA o ataque ao Iraque. É difícil acreditar nas motivações alegadas.
São frágeis e inverossímeis. Saddam é
execrável. Tirano sem entranhas.
Massacrou o povo curdo e é uma
ameaça ao próprio Iraque. Mas é inconcebível que uma grande potência,
que já utilizou com êxito seus instrumentos de pressão para contê-lo, possa fazer o que estamos vendo. O povo
do Iraque já sofre por Saddam, sofre
pela fome, sofre pelo embargo, sofre
pela desesperança. Por que aumentar
suas desgraças matando civis, destruindo (sic) o Ministério da Cultura?
Da Inglaterra não falemos nada. Esse Blair me parece menos um líder e
mais um político esperto que pensa
enganar a todos: à direita, imitando-a,
à esquerda, incensando-a com fogos
de artifício. Onde está a Grã-Bretanha
de Disraeli, Pitt, Churchill? Suas justificações são de terceira via.
Onde estão os organismos internacionais, o modelo de proteção à paz
montado como nova política mundial? Onde estão as providências contra a Bósnia, as armas atômicas da
África do Sul, da Coréia do Norte, do
Irã, de Israel?
Ainda mais, para desgraça da visão
sobre os Estados Unidos, pesa a suspeita de um gesto pessoal de Clinton,
para fugir do caso Lewinsky. Nunca
um relacionamento frívolo (!) teve
tantas consequências. Os republicanos, tendo a opinião pública contra,
parecem maníacos sexuais. E, agora,
Clinton os acompanha na insensatez.
Substitui o erotismo pela execrável
cultura da guerra.
Queira Deus que a opinião pública
não compreenda assim, porque senão
os foguetes Tomahawk lançados contra Bagdá podem atingir o prestígio, a
imagem e o coração do presidente dos
Estados Unidos, hoje, no mínimo, um
homem sob suspeita.
Eu abomino a violência.
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|