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FERNANDO DE BARROS E SILVA
No coração das trevas
SÃO PAULO - Centenas de homens disputam sacos de comida
entre os escombros; a polícia, com
nove guardas, tenta contê-los, em
vão; um dos saqueadores cai no
chão, atingido por um tiro na nuca,
disparado por um policial; enquanto agoniza, outro homem lhe toma a
carteira do bolso. A cena em Porto
Príncipe foi registrada e relatada
ontem na Folha pelo repórter-fotográfico Caio Guatelli.
O jornal "O Globo" reproduziu
outras duas imagens de um linchamento na capital do Haiti. Na primeira, um homem nu e com os pés
amarrados é espancado a pauladas,
cena observada por uma criança; na
segunda foto, vemos apenas suas
pernas, enquanto o resto do corpo,
coberto por dejetos, arde ainda vivo
sob a fogueira improvisada na rua.
Estamos no estado de natureza
hobbesiano -da guerra de todos
contra todos. O que mais estarrece
no Haiti é a falência total do Estado, a ausência de qualquer serviço
público para socorrer as vítimas:
não há bombeiros, não há defesa civil, não há atendimento médico
-não existe governo.
Sim, seria preciso construir um
Estado no Haiti. Mas nas últimas
décadas o Estado foi o grande vilão
da comunidade internacional, visto
como foco de corrupção e de ineficiência, um problema, nunca uma
eventual solução. Foi o que disse o
cientista político haitiano Robert
Fatton, professor nos EUA, em entrevista ontem a Claudia Antunes.
Bilhões de dólares transferidos
ao Haiti nos anos 90 acabaram
enredados e consumidos pela estrutura de ONGs, soldados e empresas americanas que atuavam no
país. A sociedade civil planetária
engoliu o dinheiro.
Não se sabe o que será do Haiti
quando o miserê sair do noticiário.
Mais uma vez, é grande o risco de
que a indústria da ajuda humanitária sirva mais à rede de ativistas e
organizações internacionais do que
à reconstrução da infraestrutura e
à construção de serviços públicos
no país. Já vimos o filme. É atroz,
monótono e não tem final feliz.
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