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Riso e democracia
ROBERTO ROMANO
Na guerra das sátiras, as democracias ocidentais são atacadas pelas massas que se curvam sob
as piores ditaduras
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"As pessoas têm medo do riso porque ele corta, exclui, agride. Elas precisam do riso
porque ele distende, desarma, une."
Claude Roy
A democracia fortalecida por Sólon agonizou em 322 a.C. Mas viveu 200 anos. O regime se tornou viável
porque destinado a 42 mil cidadãos.
Outra vantagem do modelo ateniense
-paradigma do Ocidente político-
reside nos seus prudentes estadistas,
contra os demagogos. Os líderes ponderados praticam um imperativo categórico: "nada em demasia".
Desse modo, a dosagem dos elementos constitucionais permitiu que o Estado não fosse conduzido segundo princípios vagos (alimento para os demagogos) nem retomasse a tradição inquestionada (alimento dos aristocratas).
A democracia ateniense, elaborada
lentamente, experimentou modificações sucessivas. Nenhum setor social teve preponderância absoluta no jogo político nem aniquilou os demais. Cada
instância de poder era corrigida por outra, de modo que todas contribuíssem
para a boa ordem constitucional.
Entre os direitos garantidos na democrática Atenas, o mais elevado é o de
opinião, unido à crítica e ao riso. Os inimigos daquele regime se beneficiaram
da sua moderação. Apesar de algumas
tragédias, como o processo de Sócrates,
a tolerância imperou na cidade e, nela,
foi possível criticar com máxima crueza
as instituições e os seus chefes. Mesmo
Sócrates, durante um terço de século,
falou com toda liberdade contra a ordem democrática.
"A comédia, a tragédia, o panfleto, os
textos de propaganda hostis ao regime,
às inúmeras leis e aos órgãos diretivos
ou contra os seus defensores não foram
perseguidos. Logo, um grande liberalismo, uma verdadeira liberdade de imprensa duplicada pela tribuna livre, onde se combatiam concepções e paixões
variadas: a "oposição" política intelectual não foi proibida" (P. Cloché, "La
Democratie Athénienne").
"A República" de Platão é um requisitório violento contra a democracia em
nome da justiça. As peças de Aristófanes (sobretudo "As Vespas") caçoam
dos sagrados valores democráticos justamente no ponto dolorido e atacado
por Platão: a justiça. Aristófanes pinta
os juízes democráticos como venais. O
riso das platéias consagra o seu gênio,
mas evidenciam seu erro político e ideológico. Sem riso, não existe democracia.
É por tal motivo que as democracias
ocidentais são hoje atacadas -na guerra das sátiras caricatas- pelas massas
que se curvam, sérias e silentes, sob as
piores ditaduras.
Na ordem cristã, apesar dos muitos tiranos sérios, há abertura ao riso. Ainda
agora pode-se ler na prestigiosa revista
"Concilium" artigos como o de Karl-Joseph Kuschel sobre o poder liberador da
gargalhada. Nenhum católico verdadeiro ignora os conselhos de Pascal na 11ª
"Carta a um Provincial": "Há muita diferença entre rir da religião e rir de
quem a profana por opiniões extravagantes (...) seria impiedade deixar de
impor o desprezo pelas falsificações que
o espírito do homem opõe à religião".
O Éden prometido é um lugar onde a
liberdade e o riso se realizam ao máximo: "Os justos rirão e tremerão ao mesmo tempo". Pascal evidencia o castigo
do pecado pelo riso divino: "Nas primeiras palavras ditas por Deus ao homem após a queda se encontra uma caçoada e uma ironia picante (...) pois, seguindo-se à desobediência de Adão,
Deus, como castigo, tornou-o sujeito à
morte e, após tê-lo reduzido à condição
miserável devida ao pecado, riu dele
com palavras de brincadeira. Eis que o
homem se tornou um de nós. Isso é
uma ironia cruel e sensível pela qual
Deus o espetou vivamente".
Quando se proíbe o direito humano
ao riso, a inteligência, a fina percepção e
a crítica são torturadas. Não por acaso,
Kant diz que a religião, com a sua santidade, e os governos, com a sua majestade, não têm a prerrogativa de fugir à crítica. O autor dos "Sonhos de um Visionário" sabia manipular a risada, algo
aprendido com Voltaire, outro que ajudou a destruir o reino da pretensa santidade que mantinha fogueiras e autos da
fé. Na ordem laica, a religião deve ser
vista oficialmente nos limites da simples
razão. Sem mais.
Os brasileiros aprenderam a valorizar
o riso contra as duas ditaduras do século 20. Sem Stanislaw Ponte Preta e o "Febeapá", muito sangue a mais correria
no solo brasileiro. O mesmo vale para o
"Pasquim" e todos os nossos cartunistas, vítimas preferidas da censura.
Após tanta luta, é covardia aceitar o
ultimato dos que se pretendem sérios
quando se trata da sua religião ou ideologia, mas se sentem à vontade para pregar o ódio, silenciar sobre homens-bomba quando estes se proclamam fiéis
a sua crença. Não é hora de fazermos
mea-culpa, renegando o sangue dos
nossos mártires, como Vladimir Herzog e milhares de outros. É tempo de
ampla defesa da democracia. E do nosso
direito sagrado de rir neste vale de lágrimas onde pontificam os que defendem
o terror e a censura.
Roberto Romano, 59, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).
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