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TENDÊNCIAS/DEBATES
Lembrando o Carnaval
Era a concretização da idéia que sempre me acompanhou, de levar às festas populares as mais urgentes reivindicações
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OSCAR NIEMEYER
Carnaval do Rio... Como tudo
mudou! Lembro que, quando garoto, era na esquina da rua das Laranjeiras que víamos os blocos passar, todos
vestidos de índios -alguns mais organizados, como o da Fábrica Aliança.
Às vezes, o pai nos levava para assistir
à passagem dos préstimos no hall de entrada do Clube de Engenharia, e ali ficávamos, trepados em bancos, proibidos
de ir à rua, acompanhando o espetáculo. Recordo que, numa noite, um senhor tentava acender um charuto, e eu,
inadvertidamente, procurei apagá-lo
com um lança-perfume. O fogo subiu
pelo rosto do homem, que, furioso, bengala na mão, se aproximou do banco
onde estávamos e indagou: "Quem fez a
brincadeira?". Aí, como tantas vezes
acontece, a generosidade desapareceu, e
uma senhora interveio, indignada,
apontando para mim: "Foi esse menino, aí. Não ia falar, mas ele está rindo".
Depois de casado, nunca pensei em
Carnaval, quando, para surpresa minha, fui convocado por Brizola para
projetar o Sambódromo do Rio. Uma
aventura de que me lembro com muita
saudade, pela decisão com que ele e
Darcy Ribeiro levaram adiante o projeto, contra todo tipo de objeções -não
haveria tempo para construir o Sambódromo, a época das chuvas seria obstáculo impossível de vencer... e até para
um córrego, que diziam passar por baixo das arquibancadas, apelaram. Mas
Brizola e Darcy não deram bola para tais
provocações, e o Sambódromo foi inaugurado na data prevista.
Durante os três meses que durou a
construção, muitas vezes visitei a obra,
acompanhado de Darcy e José Carlos
Sussekind, responsável por sua estrutura, e, apesar do prazo curto que tínhamos pela frente, Darcy não se cansava
de propor novas soluções. "Vamos fazer salas de aula debaixo das arquibancadas?", sugeriu um dia.
E lá está a escolinha que imaginou -e
que ao prefeito de Paris tanto espantou:
"Nunca vi nada parecido", disse. Recordo, com a obra quase concluída, Darcy a
me pedir: "Oscar, faz qualquer coisa
marcando o Sambódromo". Trata-se
do arco que projetei e que foi construído na praça da Apoteose, aplaudido
com entusiasmo por Brizola e Darcy. E
no qual Cesar Maia resolveu pregar
mais um dos inúmeros anúncios da
prefeitura que espalha pela cidade
-apesar de ser obra realizada pelo governo de Brizola e tombada pelo Estado.
Pois bem. Sempre considerei que é
durante as grandes festas populares que
as palavras de ordem devem se fazer ouvir, levando aos participantes protestos
contra tudo que significa injustiça social
ou ofensa a nossa soberania. E lamento
que isso não ocorra com maior freqüência, como uma resposta a este clima de
miséria e opressão em que vivemos.
Muitos anos atrás, lembro-me bem,
estava sozinho num hotel em Brasília e
assistia pela TV ao desfile da Escola de
Samba São Clemente. Para o meu espanto, o tema era: "O menor abandonado neste mundo de ilusão". E fiquei a escutar o canto, triste, a lembrar a miséria
que corre pelo país, as crianças mais pobres a perambular pelas ruas, dormindo
nas calçadas, enquanto outras, em número muito menor, usufruem todos os
privilégios que o dinheiro permite.
Mal havia desligado a televisão, uma
amiga me telefonou. Falei-lhe do desfile,
e ela me interrompeu: "Oscar, não chore". É claro que eu não chorava, embora
-quem sabe- pouco faltasse para isso. Não era apenas a miséria que me
magoava mas também a injustiça imensa, que precisamos eliminar.
Tudo isso explica o entusiasmo com
que acompanhei a passagem da Escola
de Samba Unidos de Vila Isabel no
Sambódromo. Era a concretização da
idéia que sempre me acompanhou, de
levar às festas populares as reivindicações mais urgentes. Dessa vez, o tema
era a defesa da unidade e da integração
dos povos que compõem a América Latina. Não podia haver assunto mais
apaixonante neste momento em que vemos esse continente tão ameaçado.
E senti que a campanha de defesa da
América Latina atingia uma nova etapa,
mais clara e vigorosa -como a atuação
surpreendente e corajosa de Chávez impõe. E o desfile da Vila Isabel prosseguiu, com a escultura monumental de
Bolívar a lembrar que as coisas se repetem, que é urgente a reorganização política da América Latina, agora ameaçada
pelo império odioso de Bush.
Pouco conhecimento guardava daquela figura extraordinária... Artigos
publicados, conversas políticas no escritório, sobretudo o livro de Gabriel García Márquez, "O General em seu Labirinto". O assunto me atraía, e recorri à
enciclopédia. Lá estava a história desse
herói venezuelano, todo feito de coragem e desprendimento.
E fiquei a ver, emocionado, como o
povo do Rio de Janeiro participava de
tudo aquilo com especial entusiasmo, a
se identificar com a luta política que
sentimos crescer em seus corações.
Oscar Niemeyer, 98, arquiteto, é um dos criadores de Brasília (DF). Tem obras edificadas na Alemanha, Argélia, EUA, França, Israel, Itália, Líbano
e Portugal, entre outros países.
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