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Reforma penal e tolerância zero
ROBERTO DELMANTO JUNIOR
O furto de um CD player de um carro, quebrando-se o vidro, tem a mesma pena mínima do peculato, que é assalto aos cofres públicos
HÁ ANOS, em Nova York, implementou-se o programa
"Tolerância Zero". Defende-se rigor com a pequena delinqüência
visando obter a redução dos crimes
violentos. No Brasil, há quem defenda
a "tolerância menor do que zero", como certo governador (Folha, 8/2).
Ele não está sozinho. Muitos juízes,
com apoio de parte do Ministério Público, vêm inflando as cadeias (já superlotadas) ao resistir às penas alternativas, ao manter prisões em flagrante por furto de coisas insignificantes e ao decretar prisões provisórias de acusados que, se condenados,
terão direito a pena alternativa ou em
regime aberto.
O resultado está na mídia. Em Minas Gerais e São Paulo, são antigas as
denúncias de cadeias que lembram o
Holocausto. No Pará, o horror da
adolescente presa com homens por
tentativa de furto, estuprada por dias.
Em Santa Catarina, uma adolescente
e uma mulher ficam por dias acorrentadas a postes de delegacia. Em Maceió, acusado de furto de um queijo
passa meses em cela desumana; outro, acorrentado (Folha, 24/2 e 10/2
deste ano, 25/11, 5/12 e 29/12/ 2007).
A maioria dos presos submetidos a
essa situação é de acusados por crimes contra a propriedade privada,
ainda que praticados sem violência.
Outra, de "mulas" do tráfico, sendo
raros os grandes traficantes presos.
Há outras formas de violência, contudo, que causam males mais graves à
sociedade, as quais não são alcançadas pelo nosso sistema repressivo ou,
quando o são, encontram indisfarçável benevolência.
Onde estão os arautos do discurso
punitivo ao lembrarmos da violência
da nossa desigualdade social? Da violência da total falta de perspectiva para jovens que estão a pedir esmolas?
Da violência das filas na saúde pública e dos governos que não priorizam
transformar favelas sem esgoto em
bairros dignos? Da violência de gastar
milhões para enviar um brasileiro ao
espaço em vez de investir em educação? Da violência do desvio de dinheiro público em obras superfaturadas, sendo, por vezes, até reeleitos os
políticos acusados da falcatrua?
Se o direito penal é um instrumento excepcional de proteção de bens
como vida digna e liberdade para que
todos possam encontrar condições
igualitárias de desenvolvimento, não
se pode conceber um sistema penal
que priorize a proteção da propriedade privada, servindo à manutenção
de um status quo altamente doentio
não só em termos de desigualdade social, mas também de desigualdade
punitiva.
Tamanha é a proteção da propriedade privada em nosso Código Penal
que a pena mínima do roubo com arma de brinquedo é igual à do homicídio privilegiado, e a do furto, a mesma
da lesão corporal grave. E mais, o furto de um CD player de um carro, quebrando-se o vidro, tem a mesma pena
mínima do crime de peculato, que é
assalto aos cofres públicos!
Afora essa absurda inversão de valores e o nosso vergonhoso sistema
carcerário, o sistema penal enfrenta
outros problemas que também clamam por reformas. Lembramos apenas quatro.
O primeiro que a todos perturba é o
da morosidade da Justiça, sendo grave o equívoco de um projeto do Senado que propõe acabar com a prescrição, em vez de enfrentar a lentidão.
Se a Justiça já é lerda, será pior se não
houver prescrição.
Igualmente, o foro privilegiado para deputados estaduais, federais e senadores, além de prefeitos, governadores, ministros etc., que gera gritante impunidade. Afinal, todos deveriam ser iguais perante a lei.
Envergonha o Brasil, também, a
tortura e o abuso de prisões temporárias para obter confissões. Quando
um juiz admite a utilização de uma
confissão policial para condenar,
"desde que corroborada por outras
provas", estimula-se, indiretamente,
a busca pela confissão a qualquer custo. Puro resquício ditatorial.
A pouca proteção a testemunhas é
também fator que gera enorme entrave à busca da verdade.
A mais urgente reforma, contudo, é
a da mentalidade das autoridades, a
fim de que se evite essa irracional "tolerância menor do que zero" para crimes menos graves, acompanhada de
hipócrita benevolência com outras
formas de violência que geram males
muito maiores à sociedade.
Vivenciamos o absurdo. De um lado, as desumanas prisões tornando as
pessoas piores, presas do crime organizado; de outro, a impunidade dos
que desviam recursos públicos, que
gera mais desigualdade social, mais
injustiça, mais violência.
Chegamos à triste constatação de
que o atual sistema punitivo, em vez
de combater o crime, está gerando
mais criminalidade. O pior é acreditar no sistema sem enxergar o óbvio:
estamos enxugando gelo.
ROBERTO DELMANTO JUNIOR, 39, mestre e doutor em
direito pela USP, é advogado criminalista. É co-autor do livro "Código Penal Comentado", entre outras obras.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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